Dados recentes mostram que o Brasil lidera o ranking mundial de transtornos de ansiedade, com 9,3% da população afetada, o que equivale a cerca de 18 milhões de brasileiros. A depressão também é uma preocupação crescente, agravada pelo impacto da pandemia de COVID-19, que levou a um aumento de 25% nos casos de transtornos mentais no país, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). De olho nesses números em 2023, o governo federal regulamentou o Janeiro Branco, campanha nacional, criada em 2014 pelo psicólogo mineiro Leonardo Abrahão e dedicada à promoção da saúde mental e emocional. O objetivo é sensibilizar a população para a importância do bem-estar psicológico e estimular a busca por cuidados especializados. A escolha do nome “Janeiro Branco” remete à ideia de uma “folha em branco”, incentivando as pessoas a reescreverem suas histórias e priorizarem a saúde mental.
No Humaitá, a clínica Mental Rio vem trabalhando diferentes patologias relacionadas à saúde mental desde 2021. Sob a direção de Marco Aurélio Soares Jorge, psiquiatra, psicanalista e diretor técnico, a clínica oferece atendimento em Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e TDAH, entre outras. Mas para o médico tudo está ligado ao coletivo.
“Eu acho que quanto mais nós conseguirmos nos relacionar de maneira genuína e viver coletivamente, mais saudáveis seremos. A medicação é uma ferramenta potente, mas só trata de sintomas. Seria como, por exemplo, no caso da pneumonia, um médico te receitar dipirona. Serve para tratar a febre, mas não combate a pneumonia. Na psiquiatria, acontece o mesmo: você não tem nenhum medicamento que trate da doença, porque não é algo palpável. Tem a ver com a vida da pessoa, com os afetos e com sentimentos.” – afirma Marco Aurélio.
Formado há 47 anos e especializado em psiquiatria, com formação em psicanálise e em saúde pública, o médico conversou com o JB em Folhas sobre a importância da campanha e discutiu o que é, realmente, saúde mental. Além disso, falou sobre os impactos que os avanços tecnológicos e as mudanças idiossincráticas nos centros urbanos trazem para o bem-estar das pessoas, especialmente na terceira idade.
1. JB em Folhas | Qual a importância do Janeiro Branco?
Marco Aurélio Jorge | Temos que trazer essa pauta para a discussão e alertar as pessoas a refletirem naturalmente, mas é importante, também, pensar na saúde mental. Porque não existe isso de uma pessoa estar bem o tempo todo. É preciso entender que o bem-estar de um indivíduo, pode ser diferente do bem-estar do outro.
2. JBemF | Nos últimos anos nós vimos a depressão entrar em um “lugar comum” na vida cotidiana e afetar os jovens. Como você explica esse “boom”?
MAJ | Tem a ver com as condições de vida moderna, mas outra possibilidade é o fato de que muitas coisas antes não eram diagnosticadas. É o mesmo quando falamos sobre a questão do autismo. Várias crianças tinham aquele quadro, que às vezes não era tão grave assim. Se não fosse esquizofrenia infantil, ou algo gritante, eram quadros leves. Era aquela criança tímida, retraída…ou hiperativa. A criança muito peralta, a bagunceira da sala, que a professora sempre chamava os pais, podia ser um caso de hiperatividade TDAH que não era diagnosticado. Hoje é mais fácil de diagnosticar. Com a depressão acontece o mesmo. Como hoje o mundo exige muito da pessoa, não é possível se isolar, você tem que estar conectado, seja através do celular, do computador e tudo mais.
3. JBemF | Dentro dessa sua linha, existe alguma prática, que pode ser cultivada que ajude como um todo?
MAJ | A palavra-chave é coletivo. Quanto mais nós conseguirmos nos relacionar de maneira genuína e viver coletivamente, mais saudáveis seremos. Esses grupos são feitos ao longo da vida. Eu trabalhei num hospital onde fiz um grupo de amigos que, até hoje, se reúne para tomar um chopp. Esses laços fortalecem nossa saúde mental. Quando Oscar Niemeyer estava às vésperas de fazer 100 anos, uma jornalista lhe perguntou: “Como é para você completar 100 anos?” Ela imaginava que ele fosse dizer que era maravilhoso, ou algo do tipo, mas se surpreendeu. Ele falou: “Uma droga!. Cadê meus amigos que eu tinha? Todos morreram. Quem convive comigo são jovens que pensam diferente. Viver era uma outra coisa”. Ele viveu até os 104 anos com uma lucidez impressionante, trabalhando até os últimos dias e foi essa produção que manteve a saúde mental dele.
4. JBemF | Na sua opinião, o melhor remédio para saúde mental é viver com amigos e exercitar a criatividade?
MAJ | Sim, inclusive, aqui na Mental Rio, estamos desenvolvendo um projeto com pessoas da terceira idade, que já estão vivendo um tipo de isolamento. Não basta fazer exercícios cognitivos, é necessário construir uma rede de amigos e cultivar hábitos edificantes, como passeios, ir ao teatro e etc. Minha mãe vai completar 98 anos e tem o costume de pintar. A mão dela, que costuma tremer em outras ocasiões, mostra uma precisão impressionante quando ela pega o pincel.
5. JBemF | E a tecnologia? Qual o papel das redes sociais na terceira idade ?
MAJ | Toda tecnologia tem dois lados e pode ser usada para o bem e para o mal. Eu sempre penso assim. Por exemplo: agora se usa o prontuário eletrônico com Inteligência Artificial. Eu, como médico, não posso ficar para trás e fui buscar um modelo que me atende. Antes, com o notebook, muitas vezes o paciente falava comigo, mas eu precisava ficar debruçado sobre a tela escrevendo. E isso me fazia perder a interação com o paciente, que é importante. Acabei perdendo muita coisa por conta da preocupação em preencher aquela burocracia. Agora, com a I.A, o prontuário eletrônico interpreta isso para mim e me possibilita tratar somente do paciente. Ele erra, mas conforme eu o corrijo, vai aprendendo. Então, para mim, está perfeito. A rede social é a mesma coisa. Ela aproxima, mas afasta. Hoje você consegue falar com alguém do Japão, por exemplo. Ao mesmo tempo, antigamente o telefone servia para você conversar e atualmente as pessoas trocam mensagens e evitam um contato mais próximo.
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