3 de novembro de 2022
OS DOCES DESAFIOS DE ROBERTA

Roberta Sudbrack se alimenta de desafios. Pode-se dizer que esta dieta – rica em energia, disciplina e obstinação – começou quando a jovem foi para os Estados Unidos estudar veterinária e, ao chegar lá, decidiu mudar o rumo da sua história para se dedicar à culinária. Na época, ela mal sabia cozinhar e sequer poderia imaginar que se tornaria uma das mais respeitáveis chefs do Brasil. Passados quase 20 anos, ela hoje acumula várias conquistas, como o de primeira chef do Palácio do Planalto (no governo Fernando Henrique Cardoso), e uma das fundadoras da cozinha moderna brasileira. E quando já tinha conquistado uma estrela Michelin – classificação mundial que atesta a qualidade de um restaurante – com seu restaurante RS, decidiu parar e voltar ao início, abrindo o “SUD, o pássaro verde”, com comida caseira e informalidade.

Nascida em Porto Alegre, Roberta foi criada pela avó, Dona Iracema, sua referência maior: “Minha avó me ensinou a viver e, nas horas vagas, a cozinhar também”. Um pouco desta parceria de vida está presente no livro “Um tal cheiro de ambrosia – conversas com a avó Iracema”, lançado pela Editora Interseção Design de Histórias, em comemoração ao centenário que a avó faria este ano. O livro surgiu por acaso, durante a pandemia, quando Roberta, pela primeira vez, se arriscou a fazer delivery: “Eu tinha preconceito, não conseguia imaginar a minha comida rodando pela cidade de moto, sendo chacoalhada”, revela a chef que um dia resolveu escrever uma carta para a avó em suas redes sociais, em tom de desabafo e foi dormir.  Ao acordar tinha milhares de seguidores e comentários carinhosos que a incentivaram a seguir. 

– Ela está sempre comigo. Teve um dia em que eu estava muito arrasada, preocupada, e ouvi minha avó dizer “faz ambrosia”. Não tive dúvida e fui fazendo o doce, dia após dia, como forma de terapia. Depois, com potes e potes na geladeira, colocamos no delivery e foi um sucesso de vendas – confessa a chef.

 

O livro apresenta 37 conversas selecionadas, com destaque para as que, de algum modo, revelam um pouco da personalidade de Dona Iracema.  “A vó tinha algumas rotinas. Uma delas era se arrumar e ir bater perna no Leblon, avisando: rá, ré, rí, ró e rrrruaaa!!!”, lembra Roberta brincando e explicando que, por conta disso, ainda não consegue circular pelo bairro em que morou por 18 anos com a avó. Mas do Jardim Botânico, bairro que a chef escolheu para abrir seus dois restaurantes, guarda boas lembranças “Ela adorava passear no Jardim Botânico, especialmente quando tinha a feira de orquídeas. Saía de lá carregada de flores”, recorda.

Foi passeando pela região que Roberta encontrou o primeiro endereço dos seus sonhos, na rua Lineu de Paula Machado 916: “Eu passava ali na frente e pensava comigo: ainda vou abrir algo aqui.  Até que um dia vi a placa de aluga-se e não tive dúvidas”, conta.  Foram 12 anos do RS, oferecendo um conceito único: reunir pessoas diferentes em uma única mesa e oferecer um menu que era feito a partir do que natureza oferecia naquele dia. A proposta seguia o modelo europeu, com garçons de gravata, manobrista, reserva, louças e cristais, mas tinha o diferencial de semear a cozinha moderna brasileira, mostrando, por meio de ingredientes exóticos ou simples, um Brasil que nem todos conheciam. O restaurante marcou uma época na gastronomia brasileira e também no Rio de Janeiro, que ainda tinha uma gastronomia de botequim.

– Você imagina ter que chegar pontualmente às 20h para dividir a mesa com pessoas que não se conheciam e experimentar um menu todo elaborado tendo o quiabo, por exemplo, como base? Hoje os produtos naturais estão em alta, mas isso era impensável há 12 anos e nem todo mundo compreendia.  Ouvi muito desaforo de cliente e houve uma rejeição no começo, mas aos poucos as pessoas foram se acostumando e tive noites que lembravam o filme “Festa de Babete” – diz.

Além do parque, Roberta gosta de passear pelas ruas do Jardim Botânico com seus cachorros, uma paixão que também já rendeu o livro “Bom pra cachorro, gastronomia canina “, lançado em 2004.  Atualmente, está encantada com o Instituto Vida Livre, que acolhe e trata dos animais silvestres e assim que tiver um tempo na agenda quer fazer algo mais efetivo. Quando a agenda permita, ela gosta visitar restaurantes da região: “Não existe isso de concorrência, somos todos profissionais trocando suas experiências. Tem espaço para todos. Dos serviços do bairro, ela conta com a feira orgânica de sábado, apesar de ter o suporte da agricultora Fátima, que a atende desde o começo.

– Tem um amigo que diz que eu sou chata na medida certa, porque a qualidade dos alimentos é um fator importante para mim e isso eu aprendi com a vó. Para ela, este era o segredo da boa comida. Ela fazia tudo de olho sem se guiar pelas medidas. Era um punhado de cada coisa – diverte-se ela, que incluiu algumas receitas no último livro, como o arroz de leite e a ambrosia do título, claro.

Roberta começou a sentir vontade de fazer algo diferente e foi buscar inspiração voltando no tempo, quando vendia cachorro-quente dentro de um de um carro, em Brasília, no início da carreira. Ali começou o sanduíche, que teve seu momento de estrela na edição do Rio Gastronomia de 2014, no Jockey Club: “Um dia cheguei no evento e tinha uma fila imensa que achei que fosse para entrar. Me surpreendi ao ver que era justamente para o meu trailer e que estavam todos esperando o meu SudDog”, lembra.  Dona Iracema estava acompanhando a neta e pediu para participar, rendendo um único registro de avó e neta em ação.  “Sempre preservei minha avó, nunca quis que ela ficasse exposta à mídia”, explica Roberta.

Roberta e a avó curtindo o sucesso do SudDog (Foto: Marco Sobral/O Globo).

O estilo do RS fez sucesso, mas cumpriu o seu tempo e a chef já sentia que era hora de buscar novos desafios. Foram dois encontros que marcaram as novas mudanças.  O primeiro com uma fã, que acompanhava toda a carreira dela e sabia de tudo. Ela comentou que nunca conseguiria ir no restaurante, por não ter condições financeiras.  O segundo aviso veio de uma cliente que contou que tinha reservado há meses, mas sempre adiava porque não sabia o que vestir, quando finalmente tomou coragem, entendeu a proposta e gostou.

–  Ali eu vi que o restaurante tinha cumprido seu papel, mas que eu estava sentindo falta do contato com as pessoas, pois muitas vezes passava tanto tempo na cozinha que não conseguia circular pelas mesas.  Percebi também que toda aquela pompa do RS muitas vezes afastava as pessoas. Minha avó mesmo não gostava tanto de ir lá, achava fresco – comenta a chef que decidiu fechar o restaurante em 2017.

O charme caseiro do novo restaurante 

Roberta arregaçou as mangas no seu novo projeto, com proposta de comida caseira em um lugar onde as pessoas se sentissem à vontade, como em casa.  Novamente, passeando pelo bairro, encontrou o endereço dos seus sonhos, na rua Visconde de Carandaí 35.  “Eu já gostava da rua e comecei a olhar para esta casa e fazer o pensamento positivo: ela vai ser minha.  E foi.  A obra demorou mais do que devia, porque culminou também com a partida de Dona Iracema, o que deixou a chefe abalada.  Além disso, no meio do caminho tinha um bougaiville dentro do jardim da casa, com um ninho.  “Eu esperei até ela ter seus filhotes. Foram quatro ninhadas para poder mexer na árvore. Acabei dando o nome de Amélia, porque ela realmente era uma mulher de verdade, nem se incomodava com o barulho e o movimento da obra”.  Enfim, depois de transportar a árvore para outro lugar da casa e quando estava para abrir, em meados de 2018, Roberta recebeu um presente da ave.  “Achei que era caca dela, mas era a pele do último filhote e eles nascem verdes, o que inspirou o nome do restaurante”, revela. 

O famoso arroz de leite (Foto: Chris Martins).

A proposta de SUD, o pássaro verde se resume a uma palavra: liberdade. São 12 mesas em uma casa sem placa e sem reserva, com uma equipe pequena e a chef cozinhando perto. Ali o vinho fica em cima da mesa para as pessoas se servirem o quanto quiserem, o guardanapo é um pano de prato (com estilo, claro) e a comida vem em panela de barro.  “Adoro quando chega alguém de havaiana ou quando se deliciam comendo com as mãos. É sinal de que estão à vontade”, confere a chef. Estava tudo indo bem até a pandemia, que virou do avesso o mundo. E novamente Roberta mostrou que não teme os desafios e encarou mais este, parando tudo para fazer delivery. “A gente aprendeu fazendo, no susto, e consegui manter a equipe e ainda motivá-los a cozinhar para ninguém, o que é bem difícil. Contei muito com a ajuda dos clientes, que além de pagar pela comida, ainda retribuíam em forma de mensagens e carinhos. Foi um momento muito bonito, que não vou esquecer nunca“, reflete Roberta.

O medo do delivery passou e ele veio para ficar, agora em uma casa em Botafogo, onde deve dividir o espaço com a cozinha do SudDog, em breve.  E o pássaro vai continua voando na Visconde de Carandaí, com a simplicidade que encanta e alimenta.

E quando pensa se tem algo que falte no Jardim Botânico, Roberta Sudbrack responde sem pestanejar: “Aqui a gente tem a natureza. E isso basta. O Brasil reúne várias culturas dentro de uma única, a gente não tem uma comida que nos represente, temos todas. E tudo isso graças à natureza. Eu sou a pessoa mais feliz do mundo de poder ter o Sud aqui no Jardim Botânico”.

*Por Christina Martins.

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