Em tempos normais, quando caminhava pelo bairro, o compositor Abel Silva costumava ser chamado nas ruas – seja pelo porteiro, pelo jornaleiro ou pelo apontador do jogo do bicho – de poeta. Quem olhasse para aquele discreto senhor, de óculos escuros e boné, não imaginaria a bagagem musical que ele carrega. São 300 músicas, dezenas de poemas em três livros publicados e vários parceiros, do porte de João Donato, João Bosco, Moraes Moreira e Roberto Menescal, para citar apenas alguns. Sem falar de sucessos como “Festa do interior”, “Quando o amor acontece”, “Alma” e “Quando chega o verão”. Com a parceira mais antiga, Sueli Costa, completou 40 anos de gravação de sua primeira música, “Jura secreta”, eternizada nas vozes de Simone e Fagner.
O amor entre Abel Silva e o Jardim Botânico foi à primeira vista. Ou, melhor, à primeira visita. Ele e a mulher, a fotógrafa Lena Trindade, foram à casa do amigo Jards Macalé, lá pelos anos 1980, e se encantaram com o lugar. Pesquisaram e acabaram comprando um imóvel disponível no mesmo condomínio, com ajuda da gravadora. “Estava em um momento bom, com músicas em novelas, mas fiquei apavorado. Naquela época, a gente não pensava no amanhã”, reflete o compositor, nascido em Cabo Frio e formado em Letras pela Faculdade Nacional, atualmente Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao todo, já são 35 anos na vizinhança verde e musical. Aos poucos, o letrista descobriu que também morava ao lado de onde Vinícius de Moraes havia nascido e perto de Tom Jobim.
Um dos programas favoritos do artista no bairro – do qual ele vem sentindo muita falta na quarentena – é caminhar. Seus passeios matinais no JBRJ ou na orla da Lagoa foram substituídos por voltas no terraço, mas, infelizmente, não contam mais com paradas para bate-papo na padaria Século XX ou no bar Joia Carioca. O que o conforta é saber que continua cercado por três áreas reservadas extraordinárias: o Jardim Botânico, o Jockey Club e o Parque Lage. Deste último, guarda uma memória afetiva do aniversário do filho e do neto.
Neste período de isolamento, Abel tem escrito bastante, de letras de música – sozinho ou com o amigo Roberto Menescal – a poemas. A produção é tamanha, que ele garante já ter suficientes para um livro, cujo título provisório é “Nas trincheiras da poesia”. Por falar em trincheiras, Abel sentiu muito a partida do amigo e parceiro Moraes Moraes, principalmente por não ter conseguido se despedir. “Ainda não liguei para a Cecília e o Davi, estou muito triste com tudo o que está acontecendo. Moraes era uma pessoa especial”, afirma. Ele lembra exatamente quando surgiu a ideia da letra de “Festa do Interior”, que fizeram juntos.
“Estávamos na ditadura, logo depois do episódio da bomba do Riocentro (em 1981). Eu ainda morava em Ipanema e estava levando meu filho para a creche, pensando no ocorrido. Fui escrevendo mentalmente a letra, como uma forma de passar pela censura. Na verdade, a letra é totalmente política. Nas trincheiras da alegria o que explodia era o amor! Ao chegar em casa, liguei para Moraes, e, no mesmo dia, a música estava pronta.“
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