Se quiser aprender sobre a geografia do Humaitá (pedra preta, em tupi-guarani), fale com o músico, cantor e compositor Pedro Luís (foto acima: Nana Moraes), que acaba de completar 60 anos. Ele frequenta o bairro desde a década de 1970, quando cursava o antigo Ginásio, no colégio Pedro II, e conhece a região como ninguém. O bairro, que muitos acreditam ser apenas de passagem, em sua visão, desdobra-se em inúmeros recantos, chamados por ele de “sub-bairros”. Tem o “sub-bairro” da rua Viúva Lacerda, com a escadaria de pedra no final, onde a cidade encontra a floresta; o do conjunto de ruas com entrada pela Miguel Pereira e o emblemático Parque do Martelo, seu lugar favorito tanto pelo aspecto físico como a conquista dos moradores que ele representa; e ainda aquele do outro lado, que abrange a região chamada de Baixo Botafogo, nos idos anos 1980, quando Pedro Luís frequentava o Botequim, no trecho sem saída da rua Visconde de Caravelas.
Esta é a terceira vez que o tijucano mora no Humaitá. A primeira foi quando saiu da casa da família com uma de suas irmãs. No atual endereço, já está há seis anos, no “sub-bairro” do Largo dos Leões. Como a grande maioria das pessoas que têm casa fora do Rio de Janeiro, Pedro Luís abrigou-se na serra fluminense logo no início da pandemia e, de lá, saiu poucas vezes nos últimos sete meses, basicamente quando algum compromisso virtual exigia uma internet estável. Chegou a passar mais de 45 dias sem descer a serra; porém, uma vez no Rio, a Cobal é parada obrigatória.
– A Cobal é meu quintal. Acabei virando amigo de alguns comerciantes de lá, como o Aníbal, do Espírito do Vinho, e o Chevette, de uma das barracas de frutas – admite, com uma ponta de preocupação pelo descaso com que o imóvel vem sendo tratado.
A Cobal pode ser seu quintal; entretanto, era no finado Ballroom que Pedro Luís costumava bater ponto nos anos 1990. A casa de shows que ficava onde hoje funciona a filial Humaitá do supermercado Zona Sul foi palco de várias de suas temporadas, primeiro com a banda Boato e, posteriormente, com a Parede:
– Minha carreira ganha contornos definitivos no Ballroom e no Espaço Sérgio Porto. No Ballroom, fiz grandes temporadas com a Parede, fui apresentado ao Luiz Melodia e ‘engolido’ pela Elza Soares no show do grupo Rabo de Lagartixa, do qual nós dois participávamos. O Sérgio Porto sempre foi local de muito trabalho e encontros, de música, poesia, teatro, dança… – destaca o músico, lembrando que o espaço mudou radicalmente de utilidade graças a Darcy Ribeiro, que sugeriu a transformação do antigo depósito de merendas da prefeitura em centro cultural.
Essa efervescência cultural do bairro combina perfeitamente com o espírito coletivo de Pedro Luís, cuja carreira teve início nos anos 1980, primeiro com o Cobra Coral e depois com a banda Urge. Na década seguinte, integrou a banda Boato e teve composições gravadas por vários artistas, como Fernanda Abreu, O Rappa e Ney Matogrosso. Em 1996, formou o grupo Pedro Luís e a Parede e, em 1997, lançou o CD “Astronauta Tupy”, que trazia a música “Miséria no Japão”, cujos versos “Somos tios da pobreza social / Somos todos para-brisas do futuro nacional / Eu sou tio, ela é tia”, remetia ao cruzamento das ruas Macedo Sobrinho e Humaitá, com seus ambulantes. Em 2000, os integrantes do PLAP criaram a oficina de percussão Monobloco, no Espaço Sérgio Porto, que viria a se tornar o embrião de um dos maiores blocos de carnaval do Rio de Janeiro.
– Há 20 anos, o Monobloco percorreu o caminho do Planetário até a praça Santos Dumont. O crescimento do público nos levou a outras paragens, mas o primeiro desfile a gente nunca esquece – afirmou ele, em entrevista à edição 85 do JB em Folhas, publicada em fevereiro de 2020.
Foi somente em 2011, quando já tinha mais de 50 anos, que Pedro Luís lançou seu primeiro álbum solo, “Tempo de menino”. Solo, mas sempre muito bem acompanhado, compondo, cantando, gravando e sendo gravado por Zé Renato, Zélia Duncan, Roberta Sá e Elba Ramalho, entre tantos outros artistas. As três últimas, aliás, junto com Fernanda Abreu e Mart’nália, participaram da série “Encantado por elas”, em que Pedro Luís entrevistou cantoras que gravaram suas músicas em seu perfil do Instagram, em julho. Outro projeto que está nas redes é a série “Como eu toco essa canção?”, na qual ele ensina, de maneira simples, como executar suas músicas, disponível em seu canal do YouTube.
Esses são dois dos projetos que o artista encarou na quarentena, após a interrupção das turnês de “Macro” (2019) – resultado do processo de imersão cultural com o artista visual Batman Zavareze no Lab Oi Futuro – e da edição luxo de “Vale quanto pesa”, só com músicas de Luiz Melodia, lançado no início de 2020 com seis novas faixas, entre elas “Feto, poeta do morro”, até então inédita. O período de isolamento serviu também para que Pedro Luís participasse da curadoria da 2ª edição do Toca – Festival da Canção. Ao todo, foram mais de 1.500 composições inéditas inscritas, de gêneros variados e dos quatro cantos do país.
– Foram dois meses de trabalho intenso. Tinha muita coisa boa, difícil escolher as finalistas que iriam ao voto popular – destaca ele, que, no início da pandemia, promoveu a campanha “Inspiração Solidária” para arrecadar fundos para sua equipe técnica.
Para aqueles que pensam que artista não trabalha, Pedro Luís é a prova de que essa afirmação não tem fundamento. Compor, ler, pensar, tocar, ouvir, produzir, gravar, cantar, divulgar… Não faltam verbos em sua rotina, só tempo mesmo, com seu conceito amplo, passado, futuro, parado, lento, acelerado, urgente. “É um desafio viver uma crise como essa. Espero que isso tudo provoque um momento de reflexão na sociedade sobre o que é realmente importante, levando-se em consideração as pessoas, os tipos de trabalho e as relações envolvidas”, reflete.
Apesar de momentos de letargia e depressão, sua produção artística nunca parou. Durante a pandemia, Pedro Luís se dispôs ainda a reativar e estudar seus inúmeros instrumentos e equipamentos, ler livros de teoria musical, fazer aulas avançadas de Pro Tools. Tudo isso para diversificar ainda mais seu trabalho, explorando sonoridades, recursos técnicos e literários.
– É tempo de exercitar e fazer valer tudo a que tenho acesso, da gramática às novas tecnologias, cavucar esses elementos e mananciais internos. Ao ver o exemplo do Emicida, só posso pensar em “vamos deixar de preguiça” – instiga ele, que teve sua carreira revisitada no documentário “Astronauta Tupy”, de Pedro Bronz, lançado no final de 2019.
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