Texto: Liz Tamane
Uma parcela significativa da população autista só recebe o diagnóstico na vida adulta, muitas vezes após anos de sofrimento silencioso, inadequações sociais e tentativas frustradas de se encaixar. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Transtorno do Espectro Autista (TEA) afeta uma em cada 100 crianças no mundo. No Brasil, estima-se que haja cerca de 2 milhões de autistas, de acordo com o Ministério da Saúde. No entanto, não há um número exato de adultos diagnosticados tardiamente, justamente pela subnotificação e pela ausência de políticas públicas que priorizem o rastreio do TEA em faixas etárias mais altas.
A psicóloga Marisa Parreira, da clínica Mental Rio, explica que esse diagnóstico tardio ainda é uma realidade comum, especialmente entre mulheres e pessoas em situação de vulnerabilidade social. Isso acontece porque os sinais de autismo podem passar despercebidos ou serem confundidos com traços de personalidade.
“Crianças consideradas tímidas, principalmente meninas, tendem a ser negligenciadas”, diz a psicóloga. Características como dificuldade em manter diálogos longos, sofrimento diante da quebra de rotina ou hiperfoco em temas específicos são frequentemente atribuídas à timidez, controle excessivo ou mera excentricidade.
Foi o que aconteceu com Lorena Mendonça, diagnosticada com autismo apenas na vida adulta. “A gente sabe que é diferente mesmo sem saber o motivo ou o que temos de diferente dos outros”, conta. Durante a infância e adolescência, Lorena passou por dificuldades sociais e sensoriais sem que ninguém cogitasse a hipótese de autismo.
Lorena Mendonça diagnosticada com autismo na vida adulta
“Meus pais não foram atrás por falta de conhecimento, não por negligência. Eles respeitavam meus limites, então muita coisa passava despercebida”, lembra.
Ela relata que não conseguia manter amizades, interpretava falas de forma literal e frequentemente era vista como “estranha”: “As pessoas me perguntavam do nada se eu estava triste ou brava por minhas feições não combinarem com a situação. Eu não entendia como meu rosto podia dizer outra coisa além do que eu estava sentindo.”
Lorena também reflete sobre o papel do gênero no diagnóstico tardio:
“Acredito que se eu fosse homem, algum professor teria desconfiado. Hoje vejo que era claro, mas a maioria não associa autismo a mulheres, principalmente 10 a 20 anos atrás.” O diagnóstico, para ela, foi libertador: “O principal pra mim era entender o que realmente aconteci e agora eu sei como lidar. Me deu paz.”
Rogério Barreto também só teve o diagnóstico de autismo depois de adulto. Ele lembra que antes do diagnóstico, quando criança, era muito isolado. “Tinha poucos amigos e a minha interação era quase toda pelo esporte. Até hoje é assim, jogo futebol como goleiro, uma posição mais isolada”. Segundo ele, a mãe acreditava que se tratava de uma questão psicológica, mas hoje Rogério entende que o autismo já se manifestava: “Ela achava que eu precisava de psicólogo, terapia. Mas o problema era o autismo mesmo.” O diagnóstico, para ele, trouxe alívio.
Rogério Barreto também só teve o diagnóstico de autismo depois de adulto
“Senti que havia um motivo por trás de tudo. Não era só uma questão de ‘jeito meu’. Percebi que nasci assim, é uma característica que faz parte de mim.”, reflete.
Receber o diagnóstico, mesmo que tardiamente, pode transformar vidas. Para Marisa Parreira, a pessoa passa a dar um significado maior às suas experiências pessoais que antes não se ‘encaixavam’ e deixa de se sentir ‘estranha’. “Assim, o paciente tem mais liberdade para ser quem é, podendo se comunicar e conhecer outras pessoas com experiências parecidas. O diagnóstico tardio não muda quem a pessoa é, mas muda o modo como ela se vê”, explica a psicóloga.
Entre as abordagens terapêuticas recomendadas, a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) é frequentemente utilizada por oferecer ferramentas práticas para lidar com questões emocionais e sociais. Ainda assim, Marisa ressalta que não há uma única linha ideal: “Cada paciente é singular e deve ser considerado na sua individualidade”.
O acesso ao diagnóstico, no entanto, ainda esbarra em desigualdades. Pessoas em vulnerabilidade social, por exemplo, enfrentam dificuldades não só para obter acompanhamento especializado, mas também para serem compreendidas.
“Comportamentos típicos de pessoas autistas podem ser interpretados como falta de educação ou desrespeito, e acabam sendo punidos em vez de acolhidos”, alerta Marisa.
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