Difícil encontrar algum morador do Jardim Botânico que não conheça ou saiba quem é Elizabeth de Carvalho Borges. Betty não tinha nem um ano quando sua família se mudou para o prédio em cima do Bar Jóia, há 72 anos. Para quem acha pouco, é bom lembrar que há 28 anos ela praticamente não sai do bairro – ou melhor, de casa – nem para trabalhar, desde que ela decidiu criar sua Venda em Garagem. É justamente da garagem de sua casa, onde mora há 48 anos, que ela vê o tempo passar.
Uma de suas lembranças mais antigas do bairro é a igrejinha de São José, que ficava no terreno onde hoje funcionam o colégio estadual Inágcio Azevedo Amaral e a Escola Municipal William Shakespeare (rua Jardim Botânico 563). Ela estudava no Colégio Andrews, na Praia de Botafogo, mas, por volta de seus sete anos, fazia aulas de catecismo com o Padre Pinto na igreja.
– A igreja era bem pequena e o altar, todo de madeira, é o mesmo que está agora na moderna igreja de São José da Lagoa – recorda-se.
Durante sua adolescência, um evento anual movimentou o bairro. A Feira da Providência foi criada por Dom Hélder Câmara, em 1961, para arrecadar fundos para ações em áreas pobres do Rio de Janeiro e suas primeiras edições aconteceram no entorno da Lagoa (antes de ir para o Riocentro, a Feira ainda seria realizada no Parque Lage e na Hípica). Além do aspecto social, a Feira da Providência tornou-se espaço de lazer, gastronomia de outros estados e países e lugar para compras de produtos regionais e importados. Nem que quisesse, Betty perdia uma edição da Feira.
– O acesso à rua J.J. Seabra ficava fechado a carros e precisávamos fazer compras com antecedência. Antes e durante o evento, muitos amigos pediam para a gente comprar ingressos para a Feira com antecedência para eles e seus familiares. Houve anos em que compramos mais de 100, e todo mundo queria nossa companhia, se recusássemos o convite, éramos “os chatos” – conta.
Até o início dos anos 1970, antes de seu aterramento devido à especulação imobiliária, a Lagoa Rodrigo de Freitas estendia-se até onde hoje ficam as ruas Lineu de Paula Machado e Alexandre Ferreira. A avenida Borges de Medeiros, claro, também não existia. Neste contexto, Betty considera que uma obra que interditou duas pistas da rua Jardim Botânico por cerca de um ano foi o pior período que ela viveu no bairro: “Devido à obra entre o final da década 1960 e início de 1970, a gente precisava sair de casa com muita antecedência, pois a JB, que era o único caminho possível, estava com apenas uma via para cada lado. Foi um inferno”, garante.
Uma das coisas de que Betty mais sente saudade é ver a meninada brincando solta nas ruas e nas calçadas, uma convivência saudável que ela e seus filhos, nos anos 1980, puderam aproveitar. Ela percebe que não é a única. “Às vezes, quando desenho uma amarelinha ou caracol para meus netos na calçada, muita gente que passa não resiste e dá seus pulinhos”, observa.
– Quando meus filhos eram garotos e a rua (J.J.Seabra) dava mão da Lagoa para a Jardim Botânico, eles bloqueavam o acesso com galhos de árvores para andar de bicicleta ou jogar futebol. Se algum carro insistia em passar, diziam que estavam fazendo isso para arrecadar dinheiro para comprar o uniforme do time. A brincadeira rendia trocados suficientes para pãezinhos e refrigerantes na padaria Ó Philippe, que ficava onde é hoje o Belmonte – diverte-se a comerciante.
Formada em Biblioteconomia e Documentação pela universidade Santa Úrsula, Betty transformou sua garagem em loja após o falecimento do marido. Na época, a família tinha casa de praia, no campo e uma fazenda e ficou difícil administrar tudo sozinha, ainda mais sendo mulher. Não por ela, que sempre foi muito independente, mas pela própria sociedade, que discrimina a capacidade e a força femininas. O jeito foi vender tudo.
– Vender os imóveis não foi complicado, mas cada um que compra tem sua própria bagagem e história, que nem sempre combinam com o que estava lá antes – explica ela, que depois de um ano pagando um guarda-volumes, trouxe tudo para sua garagem e a da sua sogra – No final, quando as duas garagens estavam entupidas, ainda sobrou um piano do lado de fora!
Para que as coisas não mofassem na garagem, decidiu abri-la e colocar tudo à venda no feriado de 12 de outubro de 1993. O movimento foi bom e virou notícia publicada na revista do jornal O Globo, no domingo seguinte, a primeira de mais de 50 reportagens nestes quase 30 anos de atividade. Nos primeiros anos, quando a rua J.J. Seabra bombava, a Venda em Garagem ficava aberta até a meia-noite, em jornadas que começavam às 18h, depois às 14h e ampliadas para a partir das 10h. Era comum passar no final de tarde e ver Betty e as amigas reunidas na porta, conversando. “Hoje, mesmo com o isolamento, ainda aparece um amigo ou outro para jogar uma conversa fora”, afirma a simpática moradora, lembrando que, atualmente, o horário de funcionamento vai das 10h às 18h, de domingo a domingo.
– Era ótimo! A rua era muito movimentada, com bares, restaurantes e pista de dança. Até a sorveteria Mil Frutas ficava aberta até a madrugada! Meus filhos ainda moravam comigo e nós tínhamos um rotweiller, que, apesar de manso, impunha respeito. Me sentia segura – afirma a proprietária do estabelecimento, que registrou a marca, desenhada, inicialmente, numa cartolina.
Apesar de sua ocupação não dar espaço para férias, ela não se sente prisioneira do trabalho, até porque é justamente nos finais de semana e feriado que seu movimento é maior. Seus principais clientes são os jovens, que não se prendem à rigidez de conjuntos completos e escolhem uma xícara ou um móvel pela qualidade dos mesmos. O negócio sobreviveu à pandemia, mas ela acredita que, em breve, as lojas físicas vão desaparecer, com o aumento das compras on-line. Betty, inclusive, incentivou os filhos a adaptarem o negócio da família para o digital, e, há 15 anos, eles criaram a Venda em Residência, em que vão à casa do cliente para avaliar as peças e organizar a venda em um único dia da semana. No site da empresa é possível ver os itens à venda, com informações dos dias e locais para compra.
O JB hoje, na opinião de Betty, “é um bairro espetacular, um lugar ainda bastante residencial e de muita paz”. Mesmo que não saia muito de casa atualmente, Betty gosta de prestigiar o comércio local e é freguesa da vizinha Temakeria, por exemplo, de onde pede pratos para comer em casa. Vez por outra, foge para almoçar fora com amigas, mas programa certo é o jantar às quartas-feiras com as antigas companheiras de pique-cola, quase todas ainda moradoras do Jardim Botânico: “Falamos do dia a dia e das gracinhas dos netos, mas nunca sobre política para ninguém se chatear”, admite.
Um dos poucos programas externos que Betty costuma fazer é caminhar pela Lagoa, nem que seja apenas ir até a sede náutica do Vasco, tomar uma água de coco e voltar: “Considero um privilégio poder morar tão pertinho, ter pernas para caminhar e olhos para ver tanta beleza”.
Outro motivo de orgulho de sua vizinhança é a Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação. “Precisamos valorizar mais a ABBR, é incrível como conseguem recuperar as pessoas”, admira-se, mesmo que nunca tenha precisado utilizar seus serviços. Como forma de retribuir o trabalho ali desenvolvido, pelo menos uma vez por ano, Betty faz uma limpa em sua garagem, pega itens que estão parados na loja, sem venda, e doa para o bazar/brechó da instituição, cuja renda arrecadada é destinada à compra de cadeiras de roda e de higiene, andadores e bengalas.
*Por Betina Dowsley
Agora moro em São Paulo mas tenho muita saudade E do Jardim Botânico é tenho alguns moveis comprados com a Beth. Dona Maria também nos faz muita falta
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Legal saber disso. Quando vier ao Rio, dê uma passada pela Venda em Garagem para colocar o papo em dia com a Betty. Ela está sempre lá, aberta a uma boa conversa.