A pandemia desencadeou um processo de anarquia no meu relógio interno. Continuo indo dormir a 1h30, mas acordo entre 6h e 6h30 da manhã. Meu pai já havia me avisado que velho dorme pouco. Parece que tem algo no nosso inconsciente que diz ‘melhor aproveitar acordado, a fila tá andando’. Aí a gente acorda para curtir a vida, comer uma banana, ver um filme e escrever um poema.
Luiz Carlos Lacerda
Só assim mesmo para conseguir tempo para produzir tanto. A partir deste mês de dezembro, só vai se falar do cineasta Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, que está lançando um filme no Festival do Rio e dois livros de poemas, assina a curadoria de uma exposição em Paraty, prepara nova oficina de cinema e ainda será homenageado pelo Festival Internacional O Cubo, de Cinema em Língua Portuguesa.
Com 76 anos de idade e morador da região há mais de 30, Bigode foi um dos primeiros entrevistados do JB em Folhas, na edição número 6, do JB em Folhas, em 2004. O apelido é muito anterior a isso. Ele começou a ser chamado assim por Nelson Pereira dos Santos, logo na primeira vez em que foi seu assistente porque havia um ator homônimo a ele no set de “El Justicero” (1967). Bigode não esconde a admiração pelo “mestre”. Em 1971, fez o curta-metragem “Nelson filma” e, agora, estende o tema com “Nelson Filma o Rio”, que será lançado no Festival do Rio, no próximo dia 13 de dezembro. O longa foi produzido durante a pandemia com recursos de edital da Secretaria Municipal de Cultura, por meio da Lei Aldir Blanc.
– Será a primeira vez que entrarei numa sala de cinema desde o início da pandemia. Só não sei ainda se irei embora logo após a apresentação ou se serei fisgado pela curiosidade de conferir a reação do público durante a exibição do filme. Para realizar este filme, usei muitas imagens de arquivo e uma equipe reduzida, com quem costumo trabalhar. O Alisson Prodlik, que normalmente é diretor de fotografia, ficou responsável pela colorização e edição. Como não estávamos saindo de casa, confiei as novas filmagens, câmera e fotografia, ao Igor Palma, que fez oficinas comigo na mostra de Tiradentes; e o som e produção, ao Rafael Monteiro, ex-aluno da Estácio, que já havia sido ator e editor de outros trabalhos meus – conta ele, orgulhoso.
A poesia sempre fez parte dos interesses de Bigode, que dedicou parte do tempo em quarentena a escrever poemas, reunidos em “O Labirinto febril”. O lançamento está previsto para janeiro, pela Editora Tábua de Maré, que publicará, na mesma ocasião, um outro livro com poemas do cineasta, que estavam perdidos desde os anos 1960 e foram encontrados pelo artista plástico Ronaldo Miranda na feira de antiguidades da Praça XV, no Centro do Rio. Bigode, claro, já está trabalhando para transformar essa história por trás de “Clara Ovulação: O Amor” em documentário, com produção de Fábio Campos. Os textos de apresentação dos livros caberão aos companheiros de ofício Rosemberg Cariry e Cacá Diegues.
Ainda em dezembro, Bigode vai a Paraty para a abertura de uma exposição póstuma do pintor Julio Paraty, na Casa de Cultura da cidade. O pintor era muito amigo do cineasta e morreu em decorrência da Covid-19 este ano. Organizar a mostra foi a maneira que Bigode encontrou para lidar com o luto do amigo, um dos 22 que perdeu para a doença, incluindo muitos ligados à sétima arte. Tudo isso o deixou triste e aterrorizado:
– Não entrei em depressão porque mergulhei fundo na produção de roteiros; escrevi poemas; integrei a comissão de seleção do Festival de Brasília, para o qual precisei assistir a mais de 100 filmes; fiz parte da comissão de seleção de projetos culturais da Secretaria de Cultura de Florianópolis; ministrei aulas inaugurais nos festivais de curtas do Rio e de Belo Horizonte; e participei de lives e debates.
Um dos trabalhos que o envolveu neste período foi a adaptação do romance “O Livro do João” (1944), de Rosário Fusco, escritor modernista e fundador da revista Verde, que atraiu a atenção e a produção de artistas e intelectuais do período para a cidade mineira de Cataguases, incluindo nomes como Mário e Oswald de Andrade. Mas antes de tirar esse projeto do papel, Bigode vai ministrar uma oficina de cinema no Centro Cultural da Justiça Federal, a partir de 9 de janeiro. No curso, ele abordará desde o roteiro e pré-produção a técnicas de direção, filmagem, utilização dramatúrgica das lentes até finalização e relação do diretor com a equipe. Além da vasta experiência profissional, ele já foi professor da Universidade Estácio de Sá, da Escola Nacional de Cinema Darcy Ribeiro, e costuma realizar oficinas nos festivais de cinema de Tiradentes e de Ouro Preto. Muitos de seus alunos acabam fazendo parte da equipe de seus futuros projetos e tornaram-se técnicos e diretores premiados.
Nos primeiros oito meses de pandemia, Bigode não pôs os pés no hall do edifício em que vive na rua Marquês de Sabará. Além dos cuidados necessários, ele se viu às voltas com uma negacionista, que alugou um apartamento no mesmo prédio, saía sem máscara e recebia muitas pessoas em sua casa. “Não demos trégua. A pressão dos outros moradores foi tanta que seu contrato de locação acabou não sendo renovado”, conta ele, que apesar de gostar muito de onde mora, não pensa em fazer um documentário aos moldes de “Casa 9”, que foi seu endereço no início dos anos 1970, em Botafogo.
A rotina vem sendo, aos poucos, restaurada. Bigode ainda não voltou a frequentar restaurantes, cinema ou teatro. Sua salvação foram os passeios pelo Jardim Botânico, do qual é sócio. Agora, já está caminhando até a principal via do bairro, onde se permite entrar no supermercado Zona Sul ou na Casas Pedro. A Padaria Século XX é opção à Mercato Mix, na esquina de casa, que “está sempre bombada de gente”. Um antigo hábito era comprar feijoada, às sextas, e dobradinha, às terças, no Bar dos Amigos, que fechou: “Deve virar mais uma loja de bicicletas. A região está dominada por ciclistas e lojas dedicadas ao esporte. A loja aqui da esquina foi várias vezes denunciada devido à aglomeração de negacionistas, sem máscara”.
A questão da segurança preocupa, mas, na opinião dele, a região é das mais tranquilas, considerando que o Rio de Janeiro é uma cidade perigosa. “Claro que não andamos mais tranquilamente à noite, como anos atrás. A polícia quase não sobe até aqui e, quando vem, os agentes ficam apenas olhando para o celular”, observa Lacerda que, à noite, tem ficado em casa assistindo a novelas e séries da vizinha TV Globo, e notícias na TV Cultura.
Uma coisa que continua incomodando o cineasta são os projetos de ocupação do número 60 de sua rua. Lá em 2004, ele juntou-se aos moradores para lutar contra a construção de um condomínio de luxo. Já naquela época ele era contra o desmembramento do terreno unifamiliar e, atualmente, está decepcionado com a maneira com que o Instituto de Matemática Pura e Aplicada vem impondo o projeto de expansão de seu campus, sem ouvir os moradores, derrubando árvores e expulsando animais de seu habitat.
– É um absurdo quererem construir, numa área verde, um prédio para abrigar 300 estudantes, fora os funcionários e automóveis. Outra coisa é a duração da obra, prevista para três anos, implicando na circulação de caminhões de grande porte e carregando toneladas de terra e outros materiais. Segundo a estimativa de um especialista, serão mais de 2.500 viagens neste período, trafegando por ruas estreitas, numa área residencial 1, que não permite um projeto desse porte. Falta de respeito. Nós não fomos ouvidos, mas conseguimos uma audiência pública na câmara dos vereadores para inquirir a instituição. Além disso, contamos com o apoio da AMAHOR, que já luta em defesa do direito de antigos moradores, ex-funcionários do Jardim Botânico, chamados de invasores – declara, indignado.
*Por Betina Dowsley
Só uma correção: o título de um dos livros é “Clara Ovulação: O Amor” e não “Clara Ovulação do Amor”.
Muito obrigada, Wandyr. O título já foi corrigido.
Bigode é como “Cachoeira” seu fluxo criativo nunca cessa.