Às vésperas de completar 50 anos, a Cobal do Humaitá vem sofrendo com o descaso da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), órgão vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento responsável pela administração do espaço. E não é de hoje. O momento, que deveria ser de festa, é de apreensão, com diversos estabelecimentos fechados e outros recebendo ordens de despejo. O que resiste é o carinho da população pelo lugar, que frequenta e apoia os comerciantes de produtos hortifrutigranjeiros, floriculturas, bares, restaurantes, lojas de vinho, pet shop, supermercado, loja de produtos naturais e de decoração.
A Relações Públicas Elisabeth Serpa, hoje moradora do Humaitá, é frequentadora da Cobal desde o início, quando morava na Fonte da Saudade. Ela lembra que a criação do horto-mercado foi um acontecimento nas redondezas, onde havia pouquíssimo comércio na época. Como presente pelos 50 anos, Beth gostaria que a Cobal recebesse mais cuidados dos governantes, a começar pelo teto, que precisa ser inteiramente reformado, assim como os banheiros. Ela sugere também que apenas o estacionamento da rua Humaitá seja mantido. “O da Voluntários poderia ser transformado num grande jardim”.
– Muita coisa mudou ao longo desses 50 anos. A quantidade de lojas, boxes e quiosques diminuiu bastante. O bom é que alguns lojistas resistiram às inúmeras crises econômicas do nosso país, como a família Marques Pereira (Mário, Fátima e a filha Letícia), que está à frente das lojas Starlit Casa & Jardim, de jardinagem, e a floricultura Nova Hera há anos – destaca Beth (foto no Farinha Pura Experiência), que gosta do jeito de cidade do interior, onde todos se conhecem.
História
Criada durante o governo de João Goulart, a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal) tem origem relacionada à escassez da oferta de produtos hortifrutigranjeiros nas grandes cidades, em função da logística limitada da época. No Rio de Janeiro, nos anos 1970, foram implantadas quatro unidades, sendo a primeira a do Humaitá, seguida por Leblon, Méier e Campinho. As duas últimas já foram extintas e a do Leblon, enfrenta o mesmo processo de abandono público. Na mesma época, foi criada a rede estatal de supermercados Somar, que teve algumas lojas incorporadas aos hortomercados. Na Cobal do Humaitá, o Somar funcionou até o final dos anos 1980, dando lugar, posteriormente, ao Espírito do Chope, Vivant e Las Brutas.
Com o aumento da densidade demográfica do bairro e a mudança de hábitos de consumo, a Cobal foi perdendo sua função primária, passando por um período de decadência. A retomada aconteceu nos anos 1990 com a adequação gradual do perfil do mercado à nova realidade de seu entorno, onde surgiram novas edificações e aumento da oferta de serviços, com a instalação de escolas, escritórios, consultórios médicos e restaurantes. O segmento gastronômico, aliás, foi o principal responsável pelo aumento de frequência da Cobal do Humaitá.
O projeto arquitetônico do mercado foi premiado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, seguindo uma linha modernista, comum nas décadas de 1950 e 1960. O estilo “brutalista” não esconde seus elementos estruturais, deixando à amostra canos, vigas e pilastras. Foram essas características que levaram aos dois primeiros processos de tombamento municipal da Cobal, uma por César Maia e outra por Eduardo Paes. Diante da ameaça de venda da Cobal, em 2019, o lugar foi novamente tombado, desta vez pelo governo estadual, por seu interesse histórico e cultural.
Cobal Fica
Quem pensou que isso colocaria um ponto final na luta pela preservação da Cobal, se enganou. Apesar de não ter interesse em manter o espaço, a Conab não permite que os governos estadual ou municipal assumam a gestão do espaço. Com isso, os comerciantes não se sentem seguros de investir recursos próprios em melhorias.
– A Conab diz estar negociando, mas nunca sentou para conversar com os comerciantes locais. Não conseguimos reformar o banheiro, garantir acessibilidade e ainda precisamos arcar com custos extras de limpeza e segurança do espaço. Sem falar dos estacionamentos, que estão fechados há 15 meses – desabafa Milene Bedran, presidente da Associação dos Empresários da Cobal do Humaitá e do Leblon.
Dona do restaurante Las Brutas, Milene acredita que a estratégia da Conab seja esvaziar o lugar para alegar falta de uso e poder vendê-lo. A quarentena adiou as notificações de despejo e, apesar do interesse em renovar seus contratos, alguns comerciantes já receberam a visita de oficiais de justiça. Embora esteja com todas as contas em dia, a comerciante Vera Podiacki, de 72 anos, recebeu a sentença judicial na primeira semana de junho, após perder a ação renovatória do contrato de locação do DeVeras Café. Vera – e todos os outros comerciantes – ainda tem esperanças de que as promessas de solução do problema feitas tanto pelo Prefeito como pelo Governador sejam concretizadas a tempo.
– A oficial de justiça chegou muito sensibilizada e afirmou ter esperado o prazo máximo para me entregar a ordem de despejo. Ela disse: “Não gostaria que fosse eu a lhe dar essa notícia, meu marido adora seu café, nós o frequentamos há anos” – conta Vera, que tem clientes como o músico e maestro Wagner Tiso (foto), que aprecia o sabor do grão moído na hora.
Na memória de clientes e lojistas
O problema não é exclusividade do DeVeras Café. Poucos estabelecimentos voltados para a rua Humaitá não estão com ordem de despejo correndo na justiça, como o Espírito do Chopp, a Pizza Park e o Farinha Pura, que, inicialmente, era apenas uma padaria e funcionava onde hoje é a loja de produtos de limpeza e descartáveis Far Clean, ao lado do Puebla Café. O pão sem bromato do Farinha Pura caiu no gosto dos fregueses, que faziam fila na porta para comprá-lo, levando a padaria para a parte interna da Cobal. Aos poucos, o Farinha Pura foi virando supermercado, agregando boxes vizinhos, até chegar ao tamanho atual, com duas entradas e ocupando aproximadamente 1.000 m2, incluindo o andar de cima, que abriga um centro gastronômico.
A ampliação do Farinha Pura foi possível graças uma reforma da Cobal no início dos anos 1990. A obra foi realizada por Nilo Lima Passos, atualmente um dos sócios do Espírito do Chopp, que, na época, tinha uma empresa da engenharia e foi responsável pela construção de toda aquela área voltada para a rua Humaitá.
– Ali funcionou o supermercado da rede Somar. Quando fui contratado para fazer a obra, só tinha o piso, tapumes fazendo um corredor e, de um lado e do outro, caixotes. Fui eu que construí tudo desse lado e ganhei o direito do uso de um dos espaços como parte do pagamento após uma ação movida na justiça contra a Conab. Demorei um pouco a abrir um negócio porque a parte elétrica não suportava carga. Só fui inaugurar o Espírito do Chopp em de junho de 1996 – lembra ele, que lamenta não ter comemorado os 25 anos do bar e restaurante que, por cerca de 12 anos, abrigou uma concorrida roda de choro, aos domingos, com apresentações de grupos como o Época de Ouro e o Sarau.
Segundo Nilo, que também foi sócio do Ora Pois Pois e do Espírito das Artes, a partir de 2003, a Conab começou a boicotar as atividades e fazer cobranças indevidas com o objetivo de viabilizar a venda do imóvel. “Esse argumento de que não pode haver estabelecimento que não comercialize produtos hortifrutigranjeiros é absurdo. Desde 1998 isso faz parte do contrato que a própria empresa propôs”, observa ele, que considera a Conab algoz e não parceira. “Ao longo dos anos, os custos dos lojistas aumentaram, enquanto o faturamento caiu. No Espírito do Chopp, chegamos a ter 48 funcionários, agora são apenas 17”.
Se o chorinho do Espírito do Chopp não chegou a provocar reclamações significativas, a música ao vivo da boate Far Up criou um clima de guerra na vizinhança. Como funcionava de terça a domingo até altas horas da madrugada, o barulho excessivo não deixava ninguém dormir. A disputa só acabou em 2012, com o encerramento das atividades da boate. A verve cultural da Cobal seguiu representada pela Cavídeo, inaugurada em 1997 como locadora de vídeos. No início dos anos 2000, Carlos Vinícius Borges, mais conhecido como Cavi, resolveu ampliar suas atividades para a produção cultural. A realização de mostras e cineclubes atraiu mais público e mídia para a locadora, situada nos fundos do Pizza Park. A locadora virou cult e funcionou na Cobal até o final de 2020, quando se mudou para a sede da RioFilme, em Laranjeiras.
A paulistana Alice Pellegatti (foto) mora há mais de 25 anos na Fonte da Saudade e concentra suas compras de alimentos e flores na Cobal do Humaitá. Quando os filhos eram crianças, costumava levá-los para almoçar e comer sobremesa nas docerias de lá, como a Torta & Cia: “Eles cresceram frequentando esse local tranquilo, com astral familiar, um bom estacionamento e outros itens necessários no dia a dia doméstico. Minha dica especial é a Barraca da Náná, que fica ao lado do restaurante Raro, aos sábados. O carro-chefe é o acarajé feito na hora e as quentinhas com mini-acarajés para levar para casa”, indica a produtora cultural que fez questão de participar do “abraço à Cobal”, em agosto de 2020.
Um dos comerciantes mais antigos da Cobal Humaitá é o Rui Sampaio, da floricultura Nativa, aberta no início dos anos 1980. A família morava no interior do estado do Rio, perto de Petrópolis, e seu pai era feirante. Na época, os militares iam de feira em feira, convidando aqueles que eles achavam que trabalhavam bem para ocupar a Cobal. Seu primeiro ponto de venda de flores era próximo de onde hoje fica o DeVeras Café. Depois, ele teve uma loja de bugigangas e foi dono da Florália, no espaço em que hoje fica a Mosaico, loja de móveis de sua família. Além da Mosaico, os Sampaio (Rui, Elenir e os filhos André, Márcia e Rodrigo) são donos também da floricultura Nativa, da petshop Big Dog, da mercearia Antiga, da franquia Bolos da Cecília e da BrasseRio, focada em alimentação saudável. Todos esses estabelecimentos seguem pagando aluguel normalmente e nenhum recebeu notificação judicial da Conab.
– Minha lembrança mais antiga é das segundas-feiras, quando a Cobal ficava fechada para limpeza e manutenção. Eu gostava de ficar descendo a rampa de carrinho de rolimã, onde hoje é o estacionamento do lado da rua Humaitá – recorda André, que de ajudante do pai passou a proprietário da BrasseRio.
Os lojistas da Cobal são responsáveis por cerca de três mil empregos diretos e indiretos, número que, na opinião da presidente da associação, poderia ser cinco vezes maior: “A Cobal recebe um público de 10 mil pessoas diariamente, só no Farinha Pura chegam a entrar quase mil todos os dias. É uma circulação importante para um espaço tão maltratado, imagine se passar por um retrofit?”, sonha Milene, que voltou esperançosa de uma reunião com a Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Tereza Cristina.
Um fator que sempre joga a favor é o carinho que a sociedade tem pela Cobal. O jornalista Fabio Júdice, morador do Humaitá há mais de 20 anos, pensa como Milene. Ele gostaria de ver a Cobal transformada em um mercado de produtores bacana, nos moldes de estabelecimentos do gênero no mundo, com hortifruti, produtos orgânicos, restaurantes…
– Logo que vim morar aqui, a Cobal parecia um mercado internacional. Lembro que, numa das primeiras vezes que fui jantar no restaurante português Ora Pois Pois com minha família de Angra, havia um grupo de músicos e um deles tocava concertina. No final do jantar, eles saíram pela Cobal e nós fomos atrás dançando o Vira pelos corredores, parecia que estávamos no mercado da Ribeira. A Cobal traz um senso de história e, ao mesmo tempo, de civilização, sofisticação e valorização do nosso patrimônio, o que é fundamental. Eu amo a Cobal – declara Júdice.
Eventos
Uma estratégia adotada recentemente pela Cobal é a realização de feiras de moda, cultura e artesanato nos estacionamentos. Além de serem formas seguras de proporcionar atividades ao ar livre aos moradores do entorno, os eventos acabam aumentando o movimento nos estabelecimentos do mercado, representando um sopro de vida ao local. Nos próximos finais de semana, dias 3 e 4/7, a Cobal recebe o Circuito Carioca de Artes e Cultura; no seguinte, dias 10 e 11/7, será a vez da feira Faz Girar. Em setembro, a presidente da Associação promete trazer uma surpresa para Festa da Primavera na rua Humaitá para animar todo o bairro.
*Por Betina Dowsley
Só quem pode resolver este problema e o nosso presidente Jair Bolsonaro!! #cobal pede socorro
A Cobal deve permanecer, receber um retrofit, virar um lindo mercado horti, sócio, cultural, sem estacionamento, como agora, ocupados com feiras, shows e muitos turistas, como existem em vários países!
Olá pessoal!
Uma historinha que ficou marcada na minha memória.
Eu morava em petrópolis, meu marido trabalhava aqui no Humaitá. Um dia ele me trouxe para passear e fomos na Cobal. Eu estava grávida de sete meses do meu primeiro filho. Quando entrei na Cobal ” juro,” meus olhos brilharam de tão maravilhada quando vi tantas frutas! Jamais tinha visto algo igual. Um feirante conhecido do meu marido (acho que o Chevete) me vendo grávida, mandou escolher as frutas que eu quisesse. Mas eu estava tão encantada com o lugar, cheio de cores, aromas deliciosos e muito movimento que, só escolhi um caju….kkkkk isso a 38 anos atrás. Desde então, a Cobal virou minha companheira. Numa determinada época, a sorveteria ” Sorvete Sem Nome”, todas segunda- feiras um grupo (Produto Carioca) tocava lá e tinha até pessoas ensinando dança…ah! Era muito legal! Eu não perdia por nada, adorava! E assim ao longo dos anos a segunda filha, outras histórias, outros momentos…
Uma pequena poesia fiz para você
👇
Ah, minha Cobal querida
Você fez parte da minha vida
Ameaçada de ser banida
Hoje sofre com a ferida
De uma sociedade não resolvida
Cobal, Cobal, Cobal
És parceira és amiga
Não queremos sua partida
Queremos você, na nossa vida! 🙂
(Marilú)
Obrigada por compartilhar essas histórias, Marilu.
Amo…