1 de maio de 2025
DA JACA SE APROVEITA ATÉ O CAROÇO

Texto e fotos: Betina Dowsley  | Especial para Plurale

É preciso olhar para a jaca de um modo diferente. Deixar de lado a lembrança daquele cheiro forte, enjoativo, da fruta madura espatifada no chão. O principal fator de resistência à jaca – ou seja, o cheiro – pode ser contornado com o manejo correto da fruta e com a coleta antes de seu amadurecimento. E pouco importa de onde ela veio e como se espalhou pela Mata Atlântica, onde continua crescendo e frutificando. É mais importante falar sobre como a jaca pode ajudar a combater a fome por meio de diferentes tipos de preparo: dela se aproveitam os gomos, as fibras, os caroços e o até o talo, chamado de palmito – numa tentativa, acredito eu, de enobrecer o ingrediente. E antes que alguém se lembre da casca – bom, é sempre possível integrá-la ao processo de compostagem!

Minha memória mais antiga e forte da jaca é mesmo o cheiro da fruta madura. E por mais que ache o seu odor desagradável, para mim ele está associado a momentos felizes, de brincadeira com amigos no Parque Lage, até hoje um dos meus lugares favoritos no Rio de Janeiro. 

A jaca reapareceu na minha vida há uns 30 anos, na mudança para uma casa com jardim e árvores frutíferas, entre elas uma jaqueira. Por muito tempo distribuímos jaca pela vizinhança – principalmente para porteiros e funcionários de condomínios da rua, menos preconceituosos em relação à fruta – e para alguns poucos amigos e familiares que diziam gostar apenas de “jaca dura”, como as nossas. O excedente levávamos para os feirantes venderem e faturar um dinheirinho extra.

A história mudou depois de uma viagem em família à Chapada Diamantina, em janeiro de 2017, quando fomos apresentados ao pastel e à coxinha de jaca. Como os filhos haviam deixado de comer carne e frango, logo me interessei pela descoberta e passei a buscar informações sobre a fruta. A dica para quem não gosta do cheiro, da textura e do sabor da fruta madura, é tirá-la ainda verde do pé. Pesquisa daqui, estuda dali, encontrei uma variedade de receitas e saí experimentando. 

Não faltaram caretas e a resistência dos amigos. Com o tempo, parei de revelar antecipadamente os ingredientes das receitas, a fim de evitar o bullying de ser chamada de “Beta Gil”. 

De lá para cá, foram muitos pratos: a partir da chamada “carne de jaca”, que é básica para várias preparações, passamos pela moqueca feita com os gomos e pelo curry de caroço de jaca (meu favorito), até chegar à mousse de jaca ou ao paté de caroço, a receita mais curiosa. Ainda falta testar o lombo de jaca, feito com o palmito – o tal talo central da fruta. 

Bela Gil, contudo, não está sozinha. Em 2014, surgiu um projeto de educação ambiental para defender as virtudes da fruta: o Instituto Mão na Jaca, que atua em diversas frentes, com o objetivo de evidenciar o potencial sustentável das jaqueiras. A atuação do IMJ vai desde a oferta de cursos de capacitação profissional em arborismo (necessários para coletar as jacas) até o mapeamento das jaqueiras e a realização de oficinas culinárias, que apresentam o vasto potencial da fruta e seu aproveitamento integral. Isso inclui os seus muitos caroços, para evitar o desperdício em todas as etapas.

Em se tratando de jaca, abundância é a palavra-chave. Para Marisa Furtado, uma das fundadoras do projeto, “a fruta é a própria expressão da ideia de coletividade, já que é difícil de colher, carregar e comer jaca sozinho. Isso faz da jaca um prato cheio para ajudar a combater a insegurança alimentar, além de promover cidades e comunidades sustentáveis. 

Além do valor social, econômico, cultural e ambiental da fruta, vale lembrar que, graças ao tamanho das árvores, a jaqueira é capaz de sequestrar grandes quantidades de carbono. Essa virtude a transforma numa ferramenta útil no combate às alterações climáticas. Há de se considerar, também, os benefícios nutricionais da jaca. Por ser uma ótima fonte de energia, rica em vitaminas A e C, fibras, carboidratos e antioxidantes, a jaca ajuda a prevenir inflamações e a combater o envelhecimento celular. Auxilia, também, no controle da pressão arterial. 

O mapa da jaca

Assim como a manga, o jambo, o jamelão e até a banana, a jaca não é de origem brasileira, mas há séculos faz parte do cenário de cidades como o Rio de Janeiro. Quem mora nas saias do Corcovado ou já fez um passeio pelo Parque Lage e pelas trilhas das cachoeiras do Horto no verão reconhece, de longe, o odor da fruta. E, muito provavelmente, já enfiou o pé na jaca – literalmente. Em São Paulo, a jornalista Talita Xavier criou o Jaca Livre, um mapa colaborativo que aponta a localização de jaqueiras em áreas públicas, onde as frutas podem ser colhidas gratuitamente. A iniciativa, que tem por objetivo democratizar o acesso à jaca, já mapeou pelo menos 500 árvores, distribuídas em todo o país.

Há duas hipóteses para a chegada das jaqueiras ao Brasil. Registros históricos apontam que os colonizadores trouxeram a jaca da Índia para o Brasil no final do século XVII, como parte de um projeto global de experimentação botânica, que transplantava espécies entre várias colônias tropicais. Outra possibilidade é de que a fruta tenha chegado a bordo dos navios que transportavam os escravizados vindos da África, e funcionava como um alimento conveniente para a viagem.

O professor Alexandro Solórzano, da PUC-Rio, além de ser um grande defensor da jaca, é um dos coordenadores do Laboratório de Biogeografia e Ecologia Histórica, que estuda a interação sociedade-natureza, aplicada à conservação da Mata Atlântica. Uma de suas linhas de pesquisa versa sobre a origem e a importância das jaqueiras nas florestas da região metropolitana do Rio de Janeiro. Seu estudo acadêmico apontou a jaca como indicador biocultural de onde houve, ou há, presença humana no Parque Nacional da Tijuca – considerando que as jaqueiras teriam servido de alimento tanto para os produtores de carvão vegetal quanto para os trabalhadores responsáveis pelo reflorestamento do atual Parque Nacional da Tijuca, encomendado por D. Pedro II, a fim de recuperar o abastecimento de água na cidade. 

A observação da relação histórica entre cultura e meio ambiente explica a ocorrência da espécie próxima a centros urbanos, em zonas de baixa renda e, no Rio de Janeiro, junto às trilhas que cortam a maior floresta urbana replantada do mundo.

– A interconexão da fruta com a floresta e o ser humano é um tema que me dá prazer. Tenho interesse por ecologia política e em demonstrar que a jaqueira não é uma espécie invasora, mas sim sustentável. E que pode fazer parte da merenda escolar e garantir segurança alimentar à população de baixa renda – adianta Solórzano.

Que assim seja! Aos poucos, a popularidade da jaca vem crescendo no Brasil, como alternativa à carne. Em muitas partes do mundo, porém, a jaca não é vista como substituta de outros alimentos, mas como um alimento em si. E se aqui a comercialização da jaca é desvalorizada, o mesmo não se pode dizer de seu preço em Londres, onde uma fruta chegou a ser vendida por 160 libras (algo em torno de R$ 1.120) em uma barraca do tradicional Borough Market, em fevereiro de 2022! 

Ainda precisamos comer muita jaca para chegar a tal valorização. Um primeiro passo para quem mora no Rio de Janeiro é aproveitar a degustação de pratos feitos à base de jaca, que acontece todos os sábados na Quinta da Boa Vista. Graças ao Mão na Jaca, os corajosos podem aproveitar e levar um exemplar da fruta de graça para casa. E fazer como eu: compartilhar a jaca de tudo que é jeito, com a família e os amigos!

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