Nada mais adequado para um biólogo do que viver cercado pela natureza. Foi ainda calouro do curso de Biologia, que Henrique Rajão botou na cabeça que iria morar no Horto. Descobriu a região por acaso, após uma festa de um colega de faculdade e, descendo a pé pela rua Pacheco Leão às 5h da manhã, pensou “vou morar aqui um dia”. O desejo tornou-se realidade em 1998 e, a cada dia, a certeza de que estava certo em sua escolha aumenta. Henrique hoje é professor do Departamento de Biologia da PUC-Rio e parceiro do Jardim Botânico do Rio de Janeiro em diversos projetos. O mais antigo é o Passeio de Observação de Aves, que criou em 2002. O programa é mensal, promovido sempre no último sábado do mês, sendo o próximo no dia 24 de setembro, às 8h, abrindo a estação mais animada e colorida do JBRJ.
A vida de Henrique é centralizada no eixo Pacheco Leão-PUC-Rio. O melhor do Horto, na sua opinião, é a proximidade da natureza – “além da mata, minha rua tem muitos pés de cajá-mirim e jamelão, quando tá na época o chão fica coalhado” – e o clima de cidade pequena, onde os moradores, em sua maioria antigos, se cumprimentam mesmo sem se conhecer formalmente. Ele vai de bicicleta para o trabalho e faz tudo neste percurso, o que não encontra por aqui, apela ao Mercado Livre, um dos costumes herdados da pandemia. Após dois anos vivendo em um sítio fora do Rio, ele ainda estranha ouvir as buzinas dos carros.
– Ia muito ao Yumê, agora o restaurante que mais frequento é o Jojô, pertinho de casa. Se vou ao cinema no Shopping da Gávea ou combino um chopp no Baixo, vou a pé. Costumo passar por dentro do Jardim Botânico, mas outro dia cruzei com o Chico Buarque andando ao longo da grade do parque à meia-noite – destaca ele, que se sente seguro mesmo de madrugada.
O Baixo Gávea é um dos lugares que frequenta desde que se mudou para o Horto. Quando consegue uma mesa, senta no Braseiro; senão apela para o Brewteco, cujo atendimento, em sua opinião, é lento: “Saudades do Lacerda e do Boi”, admite, nostálgico, lamentando também o fechamento da livraria Timbre. As chuvas são uma preocupação. Por outro lado, admira o trabalho de Roberto Fonseca, do Horto Natureza, e o conhecimento ancestral da flora, preservado pelos antigos moradores da região.
Entre os lugares da região mais frequentados pelo biólogo, o Jardim Botânico é imbatível. Além de usá-lo como atalho entre o Horto e a Gávea, ele vai lá duas ou três vezes por semana, a lazer ou a trabalho. Em 2013, o ornitólogo lançou o “Guia das aves do Jardim Botânico do Rio de Janeiro”, com sua vizinha, a fotógrafa Lena Trindade. A publicação não abrange todas as espécies já avistadas no parque, mas aquelas mais frequentes: 152, divididas em 43 famílias e 18 ordens, sendo três delas em risco de extinção. Atualmente, o professor da PUC integra o projeto Fauna, uma parceria da universidade com o JBRJ, que tem como objeto de estudo os tucanos e os macacos-prego.
– Meus alunos já viram 30 tucanos de uma vez. O melhor horário para avistá-los é de manhã cedinho ou no final da tarde – avisa ele, que coordena duas pesquisas sobre essas aves, um sobre os hábitos alimentares e outra que investiga os ninhos, situados no oco de árvores de até 10 metros de altura.
O acompanhamento da rotina dos tucanos conta com duas câmeras e a ajuda de funcionários do JBRJ, que sobem nas árvores para instalá-las e trocar os cartões de fotografia. Uma delas tem um sonógrafo e uma lente na ponta de um cabo flexível, que é colocado dentro da cavidade para ver se tem ovos ou filhotes. A segunda câmera tem sensor de movimento e é usada para registrar a movimentação das aves, ficando meses no mesmo lugar:
– Descobrimos um monte de coisas. A reprodução dos tucanos vai de setembro a janeiro. Cada casal tem seu ninho e gera de três a quatro filhotes. Os ovos levam 40 dias para eclodir e o filhotes só saem dos ninhos após 40 dias. Quando o ciclo de um casal termina, entra outro no mesmo lugar – explica.
O estudo com os macacos-prego é mais recente. O tema inicial era a alimentação. Segundo o biólogo, muito se fala que eles são dependentes da jaca, mas não é bem assim, eles gostam da fruta por ser muito doce e abundante, mas é uma espécie introduzida na região, que oferece outros tipos de alimento. Uma novidade é o estudo de comportamento, em parceria com o Departamento de Letras da PUC. Nesse caso, o interesse é pela comunicação e linguagem entre eles e na relação deles com seres humanos, se existe um fonema para pedir comida ou algum som associado à agressividade. Henrique lembra que, em seu primeiro endereço no Horto, recebeu “visitas”:
Fotos: Chris Martins.
– Sou biólogo, tenho vivência com animais e resolvi fazer caras e bocas para expulsá-lo, mas o macaco encarou e mostrou os dentes. Aí recuei e comecei a fazer barulho, ele acabou saindo. O macaco-prego não é um bicho tímido, tem dentes poderosos e pode ser agressivo – alerta ele, que é responsável no Espaço Afluentes pela coluna Rebrota, para a qual vídeos semanais sobre biofilia e regeneração.
Um de seus passeios-trabalhos favoritos é estar em contato com a natureza. Gosta de ir à cachoeira e aproveita as trilhas quase virgem, privilégio graças ao livre acesso garantido por suas pesquisas no JBRJ: “A vista é linda, dá para ver a Lagoa, o Horto e entender que se trata de um bairro dentro da floresta. O Rio de Janeiro está dentro da floresta e não a Floresta da Tijuca que está dentro da cidade”, reformula ele, que acredita que esse modelo poderia ser multiplicado, sem se tornar um malefício para a floresta. O maior desafio é provar que é possível ter cidade junto à floresta.
Uma das disciplinas que Henrique Rajão leciona é Ecologia, muito procurada por alunos estrangeiros de intercâmbio. Certa vez, uma inglesa o fez repensar a relação do urbanismo com a natureza e o conceito de cidades verdes, como Londres, que, em 2019, tornou-se a primeira Cidade Parque Nacional. A iniciativa avaliza os centros urbanos onde as pessoas vivem em conexão com a natureza, em que os rios e lagos são navegáveis e próprios para banho, e onde a população tem real interesse em hábitos mais saudáveis e ecologicamente corretos.
Neste contexto, o biólogo reconhece que viver entre o Jardim Botânico e a Gávea é um privilégio, mas não era para ser assim. Ele chama a atenção para um artigo da revista Nature, que relaciona a depressão com a distância de áreas verdes e demonstra que preservar a natureza é economicamente viável. De acordo com o artigo, a depressão pode gerar um prejuízo enorme para um país e tal estudo demonstra que o gasto de 6 trilhões de dólares por ano poderiam ser economizados graças à natureza.
– Há uma série de recomendações da ONU sobre a presença de áreas verdes em zonas urbanas, mas, no Brasil, quanto menor a renda per capta, pior é o acesso à natureza. Os ricos seguem tendo mais acesso do que os pobres, moram de frente para a praia, tem casa na serra… Eles valorizam a natureza na vida privada, contudo tomam atitudes que a prejudicam coletivamente. Infelizmente, a natureza acaba sendo um privilégio, mas não deveria ser! – defende o cientista.
Em seu terceiro endereço no Horto, Henrique não pensa em sair da região. Para ele, “as mudanças foram obras do destino. Muitas vezes parecia que não eram para acontecer, mas acabaram tendo um final feliz!”.
*Por Betina Dowsley
Foto em destaque: Chris Martins
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