Se o Jardim Botânico é o pulmão do bairro, o Parque Lage é o coração, com todas as emoções reunidas em seu palacete. O casarão (foto de Felipe Azevedo) que desde 1975 abriga a Escola de Artes Visuais começou a ser construído em 1927 e teve seus tempos de glória entre 1929 e 1941. Muitas das histórias desse período fazem parte do recém-lançado livro “Henrique Lage – O grande empresário brasileiro que, por amor, criou um parque”, do historiador Clóvis Bulcão. A publicação tem 224 páginas, incluindo fotografias do casal, das festas e de seus convidados ilustres.
A ocupação do terreno teve início ainda no século XVI, como parte do Engenho Del Rey e, posteriormente, da Fazenda Nacional da Lagoa Rodrigo de Freitas, cujas terras eram arrendadas a chacareiros. A área do Parque Lage correspondia à Chácara do Padeiro, comprada pela família Martins Lage na primeira metade do século XIX. A fim de evitar as cheias da lagoa, que, àquela época, ultrapassavam a rua Jardim Botânico, um muro de alvenaria foi construído por Antonio Martins Lage, bisavô do engenheiro e armador Henrique Lage. A biografia de Henrique Lage revela-o como um empreendedor responsável por avanços significativos na infraestrutura do Brasil, tendo investido em carvão, aço, sal e navegação, além de ter sido um dos pioneiros da indústria aeronáutica. A Companhia Nacional de Navegação Costeira ficou conhecida por seus navios “Itas”, eternizados por Dorival Caymmi na canção “Peguei um Ita no Norte” e teria influenciado até a escolha do nome do ex-presidente Itamar Franco, que nasceu a bordo de um desses navios que faziam o percurso do Rio de Janeiro a Salvador.
Apesar disso tudo, o empreendimento pelo qual Henrique Lage é mais lembrado atualmente faz parte de uma nova indústria, a do turismo. O Parque Lage com seu palacete em estilo romano é, hoje, um dos pontos mais visitados no Rio de Janeiro, com uma área de cerca de 523 mil m2, formado por jardins, floresta, grutas, lagos, represas, cavalariças e torre.
O palacete foi projetado pelo arquiteto italiano Mario Vodret sob encomenda de Henrique Lage, que queria agradar sua esposa, a cantora lírica Gabriella Besanzoni. A estrutura da construção é elevada e gira em torno de um átrio, onde foi instalada uma piscina. No interior da casa, foram utilizados vários materiais importados, como mármore, azulejos e ladrilhos. A decoração contou ainda com pinturas decorativas de seus salões por Salvador Paylos Sabaté, que cobriu de ouro estrelas na parede e no teto do quarto de dormir de Besanzoni. A Villa Gabriella, como a casa era chamada, levou dois anos para ser concluída (1927-1929) e chegou a funcionar como conservatório para a formação de músicos brasileiros, com a Sociedade do Teatro Lírico Brasileiro, fundada em 1936. A intensa vida social do casal Henrique e Gabriella transformou o espaço em um dos locais mais badalados da primeira metade do século XX, com recitais e outros eventos culturais. As festas eram famosas por reunir chefes de Estado e a alta sociedade carioca da época.
– O casarão do Parque Lage, em seus dias de glória, viveu dois momentos distintos. O primeiro, em meados da década de 1930, foi um verdadeiro conservatório musical. Pessoas de diferentes nacionalidades, classes sociais e qualidades artísticas – maestros, pianistas e cantores – animavam a propriedade dos Lage. O segundo apogeu foi no final dos anos 1930, quando as festas do casal Henrique e Gabriella ganharam dimensões nunca antes vistas no Rio. Na festa Veneziana, em 1938, colocaram gôndolas no lago, que evoluíam ao som de melodias italianas. Getúlio Vargas e todo seu governo estiveram na última grande festa do parque no mesmo ano. Numa grande clareira, foi armado um palco circular, rodeado de flores imensas, que ao mesmo tempo eram lâmpadas. Uma festa de mil e uma noites, segundo os jornais da época – detalha o historiador, que cedeu as imagens abaixo, encontradas por ele durante sua pesquisa.
Henrique Lage faleceu em 1941, e, alguns anos depois, Gabriella convidou os sobrinhos-netos Marina e Arduíno Colassanti para morarem com ela no palacete. De acordo com Bulcão, o magnata deixou em testamento boa parte da herança para sua esposa, entretanto, “logo na sequência, o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial contra a Itália. Isso serviu de pretexto para que o Estado brasileiro encampasse boa parte do patrimônio de Gabriella Besanzoni e nunca o devolvesse, um imbróglio que ainda hoje se arrasta pelos corredores da Justiça brasileira.”
Com isso, Gabriella acabou voltando para Roma, sua cidade natal. A propriedade foi tombada em 1957 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN, como patrimônio paisagístico, ambiental e cultural, considerando os vestígios e antigas ruínas do antigo engenho de açúcar e a arquitetura eclética de seu palacete. A medida conseguiu evitar que, na década de 1960, o Parque Lage virasse um condomínio. Hoje, o casarão é a sede da Escola de Artes Visuais faz parte da Secretaria de Educação do Governo do Estado do Rio de Janeiro, que compartilha a gestão da área com o Parque Nacional da Tijuca.
A efervescência dos tempos de Besanzoni não desapareceu com o passar do tempo. Em 1966, foi criado o Instituto de Belas Artes, renomeado Escola de Artes Visuais em 1975, reunindo artistas e intelectuais de peso, como Rubens Gerchman, Helio Eichbauer, Lina Bo Bardi, Mario Pedrosa, Celeida Tostes e Paulo Herkenhoff. O artista visual Xico Chaves, ex-diretor da EAV, criou e dirigiu eventos poéticos e musicais, com grupos como o Boca Livre e Céu da Boca: “Tudo sem fins lucrativos”, lembra Xico, um dos mais ativos defensores da contracultura, que chegou a dormir em uma barraca no terraço do palacete. Nessa época, o casarão chegou a abrigar também espetáculos chamados “Artimanhas”, que misturava música, dança, carnaval e circo, além do antológico grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone – formado por nomes como Regina Casé, Perfeito Fortuna, Patrícia Travassos, Evandro Mesquita e Luiz Fernando Guimarães –, que ministrava oficinas no local.
Desde os anos 1960, o Parque Lage é escolhido como locação para filmes, novelas e séries, de “Macunaíma” e “Terra em Transe” a “JK” e “Os Trapalhões”. Moradores do entorno costumam se lembrar de shows marcantes de artistas como Nelson Cavaquinho, Caetano Veloso e Tim Maia. Saraus, peças de teatro e outros eventos culturais também ocuparam o pátio interno da casa, quando a piscina era coberta por um tablado.
Um dos eventos mais marcantes da EAV foi a exposição “Como vai você, geração 80?”. Sob a curadoria de Marcus Lontra e Paulo Roberto Leal, a exposição reuniu 123 artistas de todo o Brasil. Daniel Senise, Beatriz Milhazes, Jorge Guinle, Leonilson, Leda Catunda, Cristina Salgado, Nuno Ramos, Barrão, Luiz Zerbini são alguns artistas que expressavam em suas obras a liberdade e a diversidade no processo de redemocratização do país.
No século XXI, eventos e festas continuam movimentando o palacete erguido por Henrique Lage. Além das artes visuais, há debates, palestras, exibições de filmes e ópera na tela, shows de música e festivais voltados para o meio ambiente. Em 2018, a EAV reassumiu seu papel questionador e criativo com a mostra Queermuseu, que trouxe um público diverso e contou com show de encerramento de Ney Matogrosso, curtido por muitas pessoas de dentro da piscina do casarão.
Com a pandemia, a Escola de Artes Visuais precisou se remodelar e passou a oferecer cursos remotos, em plataforma digital, atraindo alunos de outros estados e até de outros países. Com cerca de 40 professores, há ofertas de aulas em oito núcleos artísticos: pintura e desenho, imagem em movimento, estudos críticos e curatoriais, volume e espaço, corpos, desenvolvimento de projetos/poéticas, oficinas gráficas e fotográficas e parquinho lage.
*Por Betina Dowsley
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