5 de outubro de 2023
UM JARDIM QUE INSPIRA A SÉTIMA ARTE

Foto: Chris Martins

Chega outubro e o Rio de Janeiro vira a capital mundial do cinema, com vários festivais mostrando as últimas produções do audiovisual. Nos próximos 10 dias, o público vai poder escolher entre a programação do Vibra Open Air, no Jockey Club e o Festival do Rio, que este ano completa 25 anos e reúne mais de 200 filmes, entre nacionais e internacionais.  E neste total, estão incluídos atores, produtores e diretores que moram na região e vão circular pelo NET Gávea, onde acontece a Première Brasil.

Existe uma unanimidade quando o assunto é cinema no Jardim Botânico. A maioria dos moradores lamenta não ter uma sala escura na região e relembra, com saudade, os tempos do Cine Jussara nos anos 1920 – que no final era mais conhecido por sua programação pornô. O que poucos conhecem são as iniciativas pela sétima arte no bairro. Por muitos anos, Walter Lima Jr. promoveu no Centro de Visitantes do Jardim Botânico do Rio de Janeiro o Cineclube do Jardim, uma sessão de cinema comentada pelo diretor, semanalmente, às terças, que durou até 2013. 

Outro evento bem conhecido, especialmente por estudantes da Escola de Artes Visuais é o Cine-Lage, que propicia, gratuitamente, uma experiência cinematográfica ao público, sempre com uma curadoria temática. As sessões acontecem no pátio da piscina ou em outros espaços da Escola. A última edição do ano será nesta sexta, dia 6/10, às 19h, com a exibição de “Meu nome é Daniel”, seguido pelo debate com o diretor Daniel Gonçalves e Ricardo Cota, curador do Festival do Rio e morador do Horto.  

Fachada do Cine Jussara e sessão do Cine-Lage (fotos divulgação)

E neste ti ti ti cinéfilo, o Jardim Botânico sai na frente com a maior concentração de cineastas por metro quadrado. “Aqui sempre foi um lugar onde muitos atores e atrizes moravam, principalmente pela proximidade com os antigos estúdios da TV Globo. Mas virou um lugar de inspiração; silêncio, bom para pensar em roteiros cinematográficos. Tem sido o meu refúgio”, confessa o Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, morador do bairro há mais de 30 anos, que sonha filmar uma série sobre a história local, desde a chegada de Dom João VI até os dias atuais. O diretor é um que está participando do festival, com o filme “Celebrazione”, que faz uma homenagem ao centenário Pier Paolo Pasolini, cineasta italiano que passou pelo Rio de Janeiro em 1970.

Luiz Carlos Lacerda sonha em filmar a história do bairro desde a chegada de D.João VI (foto Chris Martins)

Já a produtora Clélia Bessa, sócia de Rosane Svartman na Raccord, está sempre de olho na riqueza de personagens que desfilam pela via principal do bairro. “Costumo dizer que é possível fazer vários longa-metragens simultâneos só com as pessoas que moram no Jardim Botânico. É um reduto único para o meio, no qual trocamos muitas figurinhas, principalmente nos bares que servem de cenário para as reuniões. Já fechei bons negócios assim -, destaca ela. 

Clélia (esq.), Rosane (dir.) e as filhas, que seguem os passos no cinema.

O networking entre companheiros de profissão vai do bar à feira, como destaca a diretora Lúcia Murat. Companheira de Bigode na Associação Brasileira de Cineastas, ela está há mais de quatro décadas na região e já ameaçou mudar para perto da praia, mas sempre acaba desistindo.  Talvez por superstição, já que seu apartamento é sempre usado como locação em seus filmes, acompanhado de uma cadeira vintage que virou talismã. “Ela dá sorte e agora sua presença é obrigatória”, brinca a diretora que está lançando “O Mensageiro”, no festival, que é inspirado na sua vivência como presa política. “Fiz o filme por conta do contexto político que estávamos vivendo há alguns anos. O fato de eu ter sido torturada muito jovem, despertou uma preocupação muito grande em mim quanto à violência”, explica a diretora que está finalizando um projeto a respeito dos ex-colegas de guerrilha, Zequinha e Carlos Lamarca, mortos na Bahia pela ditadura. “Muito impactante”, revela.

A cadeira da sorte de Lúcia Murat

O JB em Folhas promoveu o encontro da veterana com as jovens cineastas Ana Costa Ribeiro e Clara Linhart, que  têm exatamente o mesmo tempo de carreira de Lúcia. Na pauta, o bairro, o cinema e o Festival do Rio, onde todas estão com filmes e na hora de posar, ao se verem na foto totalmente posadas, decidiram bagunçar.  “Isso não é a gente”, brincou Clara. O local escolhido para o encontro foi o café Botânica e, claro, as três logo lembraram da figura do cineasta Eduardo Coutinho, que tinha como hábito, passar a tarde lendo um livro, acompanhado de cigarro e café, na antiga livraria Ponte de Tábuas, na esquina das ruas J.J. Seabra e Jardim Botânico, onde elas estavam.  

– Um dos maiores legados cinematográficos do bairro eram as ‘Tardes de Coutinho’. Quase todos os dias ele estava por aqui e era muito bom poder conversar com ele, que era uma referência da área”, lembra Clara Linhart, que está há mais de 20 anos no JB e que usou as bancas de jornal da região no documentário “‘Rio em Chama” sobre os acontecimentos políticos de 2013. A diretora também marca presença no Festival do Rio com o filme “Eu Sou Maria”, que será exibido dia 11/10 no NET Gávea, e fala sobre o acesso à educação privilegiada por jovens com pouco recursos.

Cena de “Eu sou Maria”, de Clara Linhart

Ana, que alterna sua rotina entre o audiovisual e as artes plásticas, começou a carreira como montadora, mas há algum tempo vem assinando a direção de séries e curta-metragens “Gosto mais de dirigir, assim, consigo fazer um pouco de tudo”, destaca ela, que estreia na direção de longa metragem com o documentário “Termodielétrico”, que será exibido dia 7/10, no NET Gávea. O filme, narrado por ela, conta a história do fenômeno homônimo, descoberto por seu avô paterno, que era físico. “Fiz tudo em casa”, confessa.

O cinema está em todos os cantos do Jardim Botânico, inclusive na sua praça mais famosa. Ali, em uma casa da Pio XI, estão reunidas a produtora Indiana, do cineasta Marco Altberg, a Movietrailer, da produtora Jeanine Brandão e o Canal Like, que é administrado pelos dois, voltado para conteúdo audiovisual.  Depois de dominar 80% do mercado de trailers para o cinema, a Movietrailer,vem se ajustando aos avanços tecnológicos constantes e ao crescimento do streaming, criando novos segmentos. “Estamos criando novos negócios. Esta área criativa nos permite ousar”, afirma a produtora.

Marco e Jeanine, sócios do Canal Like (Foto Chris Martins)

Marco é uma referência no cinema nacional, com dezenas de produções e direção de filmes como “Prova de Fogo” (1980) e “Fonte da Saudade” (1986). Quando um amigo, no Canadá, comentou sobre Popcorn TV que, muito antes do streaming, funcionava como um canal de venda para assistir filmes, Marco vislumbrou um horizonte. O diretor aprimorou o conceito e surgiu o Like, que tem o formato de um guia de TV voltado para conteúdo de cinema e streaming. que hoje é uma referência em conteúdo, e há cinco anos tem parceria com a Claro TV e recentemente, fecharam também com a marca Samsung Plus. 

“O Like cresceu muito durante a pandemia. Por conta do isolamento, as pessoas procuravam diversão na TV e tivemos uma demanda além do normal. Fizemos, inclusive, algumas lives de sucesso, com  artistas como Caetano Veloso, Michel Teló e Fernanda Abreu”, explica Marco.

A equipe do Canal Like pronta para encarar a cobertura do Festival do Rio

Ao pensar nos caminhos que o cinema nos leva, Marco lembra que abriu a produtora no Cosme Velho, na rua Indiana, daí o nome.  E ao mudar para o Jardim Botânico, foi parar na casa onde fez, por muitos anos, procedimentos terapêuticos. 

– Pode se dizer que que migrei de um sovaco do Cristo para o outro – brinca Marco, que assina a produção do filme “Raoni – Uma Amizade Improvável”, que será exibido na mostra Itinerários Únicos, dentro do Festival, dias 10/10 no Odeon e 13/10 no NET Rio4.

E assim o cinema nacional – através dos seus profissionais – segue com foco no que o  Jardim Botânico e seus arredores oferecem.

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