É difícil imaginar a fotógrafa Lena Trindade morando longe do Jardim Botânico, bairro para onde se mudou há 40 anos. Natural de Cabo Frio, ela veio para o Rio na juventude e, antes daqui, vivia em Ipanema, mantendo um estilo de vida semelhante ao de sua terra natal. Lena se encantou pelo JB quando veio, com o marido Abel Silva, para um aniversário do Jards Macalé, que, na época, morava numa vila na rua Lopes Quintas: “Fiquei sonhando em morar num lugar como aquele”, lembra. Tempos depois, um corretor de imóveis ligou, dizendo que tinha encontrado uma casa que era a cara deles:
– Quando cheguei lá, era na mesma vila do Macalé. Fiquei doida. A música “Festa do Interior” [composta por Moraes Moreira e Abel Silva] havia estourado e deu pra gente comprar – conta ela, em selfie com Xico Chaves, Macalé e Abel (de máscara), no JBRJ.
O tempo mostrou que trocar a praia pela floresta foi uma decisão mais do que acertada. Morando a poucos passos do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, o parque virou seu quintal e tornou-se fundamental em sua vida. Conheceu vizinhos, fez amigos e descobriu sua vocação e prazer: fotografar a natureza. Naquele ano, ela esteve pela primeira vez na Amazônia e, segundo ela, ninguém passa incólume por uma viagem como essa, especialmente um fotógrafo. Lena percorreu seringais, conheceu comunidades do Santo Daime e acudiu uma tribo atingida por males no fígado provocados pela malária, ao lado do jornalista acreano Edilson Martins e do sertanista Apoena Meirelles.
– Registrava tudo que aparecia. O foco inicial era gente, em particular pessoas com estreita ligação com a natureza, que era sempre pano de fundo para seringueiros, pescadores, artesãos, ribeirinhos… – exemplifica.
A experiência – em sua opinião, inesquecível – rendeu uma matéria para a Revista Geográfica e o hábito de caminhar, algo a que ela não estava acostumada. Na volta ao JB, o hábito foi incorporado, e a observação de pássaros entrou de vez em sua vida, assim como o próprio Jardim Botânico do Rio de Janeiro, para ela, o lugar mais seguro para essa prática no Rio de Janeiro. Com o biólogo Henrique Rajão, morador do Horto e um dos integrantes do grupo de observadores de pássaros, criou uma grande afinidade particular. Os dois acabaram idealizando o “Guia das Aves do Jardim Botânico do Rio de Janeiro”, publicado pela primeira vez em 2012, que documenta, através de fotografias de Lena e verbetes de Rajão, as mais de 160 espécies de aves avistadas no JBRJ.
– O livro está disponível aqui na loja do Centro de Visitantes do JBRJ. Foi um projeto prazeroso, patrocinado pelo BNDES, graças ao apoio do grande ornitólogo e economista da instituição Paulo Sergio Nogueira da Fonseca, também morador do JB – recorda-se.
A observação de pássaros trouxe a natureza para o primeiro plano. Em suas saídas, Lena presta atenção a tudo a seu redor, mesmo os menores detalhes, como um inseto, o brilho de uma teia de aranha ou um outro bicho qualquer que passa correndo. Um de seus trabalhos mais recentes foi a matéria “O som do pau-brasil”, publicada no ano passado pela revista Senac Ambiental. Com ela, Lena descobriu que a árvore símbolo do país tem a madeira mais valorizada para fazer arcos para violinos. Ela destaca que quando o Brasil entrou na rota, a qualidade da peça e o som dos instrumentos ficaram melhores: “Os arcos feitos de pau-brasil ampliaram a potência do som”, explica Lena, que colabora com outras publicações, mas nenhuma delas de forma fixa.
Atualmente, a fotógrafa aguarda a publicação de um catálogo com seus registros na Ilha de Moçambique para o projeto do designer Renato Imbroisi. O parceiro presta consultoria para empresas e cria projetos com o objetivo de empoderar comunidades de artesãos no Brasil ou onde for necessário. Com ele, Lena foi ao Jalapão registrar o trabalho com capim dourado e, no caso mais recente, a tradição de ouriversaria em prata, muito forte naquele país africano.
Quando está no Rio, o programa favorito e quase diário de Lena é caminhar pelo JBRJ, sempre com a máquina fotográfica a postos. Ela gosta de ficar sozinha, sem precisar falar com ninguém, só esperando o tempo da natureza. Paciência é a palavra e se encaixa muito bem para observadores de aves e fotógrafos de natureza: “Tem que ter paciência. Muita. Não tem jeito, porque você sabe que tem um ninho de tucano ali, mas não quando ele vai aparecer. É preciso se plantar ali e aguardar”, ensina ela, que, vez por outra, vai ao Parque Lage e ao da Cidade, onde na semana passada flagrou várias vezes um gavião pombo pequeno, em cima de uma das estátuas em frente ao Museu Histórico da Cidade, às 6h da manhã.
O medo de sair com equipamento foi restringindo a coisa de fazer seus flagrantes nas ruas. Logo que se mudou para o bairro, Lena tinha o hábito de fotografar a rua e seus personagens. Entre as lembranças boas daquela época, ela cita as festas de São João na praça Dag Hammarskjöld. Quando ainda não havia prédios grandes no começo da Lopes Quintas, quase em frente à rua Visconde de Carandaí, ela registrou Seu João, dono da quitanda, ao lado de Seu Murilo, que fazia as entregas do estabelecimento. Outra personagem que não sai de sua memória é uma senhora oriental, que descia a rua de manhã toda pintada, com a cara muito branca, gordinha e baixinha, sempre com uma sombrinha.
– Sou atraída por esses personagens que a gente vê todo dia, pessoas comuns – avisa ela, em caminho oposto à onda de celebridades e paparazis.
Um dos prazeres de Lena é andar pelas ruas do Horto. Ela lembra que, quando se mudou para a região muitas casas dali estavam abandonadas. Hoje, quase todas foram reformadas e a maior parte delas transformadas em ateliê. Em suas andanças pela região, Lena descobriu o bar A Boutique do Mar, na praça Santos Dumont. Mais perto de casa, ela frequenta o Globar, na rua Von Martius, e gosta muito do Jojô e da Jojô, que conheceu na época em que fazia ginástica no Nirvana:
– Sinto muita falta de lá. Comecei a ir logo que inaugurou e não faltava nunca. Achei uma perda, era um lugar bonito, espaçoso, cheiroso, com boa frequência, músicas, comidas e equipamentos bons – enumera ela, que atualmente faz aulas de pilates duas vezes por semana no estúdio Gestos.
Nem tudo são flores e pássaros no caminho de Lena. Ela aponta como um dos maiores problemas do bairro atualmente a sujeira das ruas e as lixeiras/papeleiras sempre transbordando. Outro dia reparou que caminhou por muito tempo com um papel na mão sem ter onde jogá-lo fora. Mas o que mais a preocupa são as pessoas em situação de rua, cujo número aumentou muito.
– Não me conformo com o que virou a calçada do antigo Ponto Frio. Agora juntou com o abandono da área em frente a loja que era do Mundo Verde. Na tentativa de conter a expansão da ocupação desordenada, a [Drogaria] Pacheco gradeou a esquina, que poderia ser linda – observa.
Um exemplo citado por Lena é o Luiz, que ela conheceu ainda garoto e chegou a ser, por pouco tempo, porteiro da vila na qual ela mora. Segundo a fotógrafa, ele era uma pessoa legal, esperta: “Demos uma chance pra ele, mas não deu jeito, hoje ele está um mulambo. E assim a gente vê vários outros perdendo a juventude, sem oportunidades. A situação piorou muito”, lamenta ela, que cita também uma moça, que fica perto da loja O Sol, que era jovem e já deve estar na menopausa: “Não é mendiga, não pede nada, mas dorme por ali”.
Aos poucos, Lena vai retomando os antigos programas. Em sua opinião, o JB é mais tranquilo do que a Gávea, mas ela afirma que, se não morasse aqui, o bairro vizinho seria a opção por ter mais vida. As novas galerias de arte na Rua dos Oitis e o próprio Shopping da Gávea, reúnem bons programas, como o cinema, um dos hábitos que ela está, aos poucos, recuperando.
Com tudo isso e apesar disso, o JB continua sendo seu cantinho favorito na cidade grande, e o JBRJ, seu quintal, terreno fértil para histórias e projetos pessoais e profissionais. O próximo é um guia de frutas do parque, em parceria com o artista visual Xico Chaves, para o qual ela está em busca de patrocínio. A publicação tem inspiração na área predileta de Lena no parque, a Restinga, que fica ao lado do Bromeliário, ponto de interseção entre seu passado e seu presente. Lá ela encontra frutas como cambuí, pitanga vermelha e preta, bapuana (também chamada de eugenia copacabanensis) e guriri.
– Duas recordações importantes aqui são a vez que um dos meus filhos caiu dentro do lago e o dia em que eu me deparei com uma flor de lótus rosa e estava sem equipamento. A flor branca é comum, mas a rosa é muito rara, nunca tinha visto. Pensei em voltar no dia seguinte para fotografar, mas acabei voltando no mesmo dia. Foi a sorte, naquela noite caiu um temporal e destruiu a flor. Só no final do ano passado, 10 anos depois, ela floresceu de novo – atesta.
*Por Betina Dowsley
Acho lindo e de relevância o trabalho fotográfico da Lena Trindade no arboreto do Jardim Botânico. São fotografias da fauna e flora presentes na cidade do Rio de Janeiro, muitas delas, espécies raras de observar.
Nós também admiramos muito o trabalho dela!