Folhas, mil folhas… Verdes, brancas ou recicladas, elas são a marca do Jardim Botânico, Gávea, Humaitá, Horto e Lagoa. Da natureza às letras, aqui elas brotam e viram frutos, e mesmo aquelas devidamente devoradas deixam saudades. Terra das eternas Ponte de Tábuas, Timbre e 7Letras, a região abriga muitos escritores, intelectuais, jornalistas e toda a sorte de formadores de opinião, que aqui encontram solo fértil para seus trabalhos. Mas se as livrarias hoje são poucas – fazem resistência apenas a infantil Malasartes, no Shopping da Gávea, e a novata Janela, na rua Maria Angélica –, não faltam editoras espalhadas em casas e prédios nesses bairros. Todas efervescentes e entusiasmadas com os auspícios de dias melhores para a cultura brasileira, embaladas pelo resultado das eleições e pela realização de eventos de peso, como a Flip e Flipei (só com independentes), que até domingo (27 de novembro) agitam Paraty e o mercado literário.
Uma das editoras mais antigas é a Azougue, de Sérgio Cohn, criada inicialmente como uma revista de poesia (em São Paulo em 1994) e transformada em editora em 2001, já no Rio de Janeiro, mais precisamente, no Jardim Botânico. Ele conta que começou transformando em livro algumas coisas que haviam sido publicadas na revista. Ao longo do tempo, acredita que o JB, de alguma maneira, influenciou sua produção editorial, com temas ligados à causa indígena e ao meio ambiente. Cohn chegou a ter escritório, funcionários, mas não quer mais nada disso e trabalha sozinho em sua casa, agora no Horto. A visão de mercado, porém, é bem mais ampla:
– Em 2022, estamos internacionalizando a Azougue, um processo que começou um pouco antes da pandemia. Percebemos que havia muito pouco esforço de levar a cultura brasileira pra fora do país e que isso era muito interessante em vários sentidos. Então, abrimos três editoras, uma no Chile, que tem distribuição na Argentina e no México também; uma nos EUA, com distribuição na Inglaterra e na Austrália; e uma em Portugal, para distribuição na União Europeia. Estamos abrangendo um território bem grande – atesta Cohn, animado com a digitalização e facilidades da produção.
O editor acredita que um dos motivos para a boa aceitação que vem encontrando no exterior é a diversidade de seu catálogo, que inclui nomes como Laerte, Sonia Guajajara, Ailton Krenak, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, para citar apenas alguns: “Outro fator que pode ser bem interessante é que o Brasil voltou a ser a bola da vez e o mundo está voltando a olhar o país com alegria”, anima-se.
Para se manter ao longo desses 21 anos, a Azougue apelou para clubes de assinatura, impressão sob demanda e vendas na gigante Amazon: “O mercado aqui é muito menor. Nosso grande best-seller é “O torto arado”, de Itamar Vieira Júnior, que vendeu mais de 200 mil exemplares. Na Espanha, um best-seller vende cerca de dois milhões”, exemplifica o editor que, na pandemia, produziu 100 livros sozinho. “Faço texto, diagramo, traduzo, vendo… Se não fosse assim, seria impossível manter a Azougue, porque eu não teria dinheiro. Hoje eu faço da entrevista até a revisão e subo os arquivos sozinho”.
Um dos orgulhos de Sérgio Cohn é a coleção “Tembetá”, com nove volumes de pensadores indígenas, iniciativa única no mercado editorial. Outro produto nesta mesma linha foi a primeira antologia de poesia brasileira que não começava com José de Anchieta, mas com cantos indígenas. Tudo isso produzido do início ao fim em sua casa, onde, aos sábados, “fica na dúvida se vai a pé para o cinema ou para a cachoeira”, como gosta de provocar seus amigos paulistanos.
O perfil da Máquina de Livros é bem diferente. A editora publica, quase exclusivamente, livros de jornalistas, com base em fatos reais. Pudera, à frente da Máquina estão dois cariocas: Bruno Thys e Luiz André Alzer, ambos com vastíssima experiência na imprensa, com passagens pelo Jornal do Brasil, O Dia, Extra e pelas revistas da editora Bloch e Veja. Mesmo habituados ao burburinho das redações, eles se adaptaram bem ao home office, adotado desde a criação da editora em 2017.
– O Bruno mora na Barra, mas eu moro no JB e nossa base sempre foi aqui. Quando precisamos de um lugar para estocar livros, alugamos um locker em Jacarepaguá. Este ano, porém, decidimos alugar uma sala no 700 da rua Jardim Botânico com dois objetivos: minha casa não virar um depósito de livros e para servir de base para reuniões – afirma Alzer, confessando que os encontros continuam acontecendo nos cafés das Livrarias da Travessa ou no Empório Jardim.
A experiência na imprensa dos sócios foi determinante para o modus operandi da Máquina de Livros. O esquema é semelhante ao de uma redação: Bruno e Alzer pensam uma pauta, convidam um jornalista para escrever e não hesitam em meter a mão na massa, batendo bola com os autores a cada 10 ou 20 dias, de acordo com a necessidade. Os temas também não fogem muito das grandes reportagens e biografias. Como o passar do tempo, a Máquina de Livros passou a ser procurada por autores com projetos interessantes ou mesmo livros prontos e sob encomenda. Só poesia e romances não têm vez. A única exceção foi o livro “O canto do violino”, escrito por Bruno Thys durante a pandemia, “mesmo assim, calçado em fatos reais”, pontua o sócio do autor.
Embora seja uma empresa especializada em produzir e editar livros de forma participativa e artesanal, o aspecto comercial é explorado em todas as suas formas. A editora é parceira das principais redes de livraria, de lojas de bairro, como a Janela, e dos dois maiores distribuidores: Catavento e Amazon, vista por Alzer como parceira importante e democrática, fazendo os livros chegarem em qualquer lugar do Brasil e do mundo. Com isso, os editores têm emplacado títulos nas listas de mais vendidos.
– Nosso maior sucesso é “Toca o barco – Histórias de Ricardo Boechat contadas por quem conviveu e trabalhou com ele”, que foi lançado em novembro de 2019 e já vendeu mais de 12 mil exemplares entre livros e e-books. A ideia do livro surgiu na Missa de 30 dias dele, quando eu e o Bruno ouvimos diversas histórias de pessoas que, como eu e ele, tinham trabalhado ou convivido com o Boechat. Já para o livro “Caso Henry – morte anunciada”, sobre a investigação da morte do menino Henry Borel, ocorrida em março de 2021, convidamos a repórter Paolla Serra, que acompanhou o caso desde o início. O projeto começou em julho e o lançamento aconteceu quatro meses depois – conta Alzer, contente por ter vendido os direitos audiovisuais da publicação à produtora Fábrica 30 dias após seu lançamento.
Um sucesso quase instantâneo foi “O Amor não se isola – um diário com histórias, reflexões e algumas confidências”, de Maria Beltrão, lançado em papel, e-book e audiobook. O livro vendeu seis mil exemplares nos dois primeiros formatos e alcançou mais de três milhões de pessoas com a distribuição do audiobook via Skeelo a clientes da Vivo e da TIM em todo o Brasil. Além disso, o livro inspirou a criação de “lives de autógrafo”, em que a jornalista e escritora conversava on-line com os leitores, que, posteriormente, receberiam em casa seus exemplares autografados. O que era para ser uma alternativa para os tempos da pandemia superou todas as expectativas e caiu no gosto popular. No primeiro evento, no auge da pandemia, 900 livros foram vendidos e, com outras duas repescagens, a autora acabou tendo que assinar cerca de dois mil exemplares.
Prestes a completar 25 anos, a editora Cobogó reflete os interesses de suas sócias, a galerista Márcia Fortes e a cineasta formada em Letras Isabel Diegues. O catálogo de mais de 300 títulos reúne obras sobre arte, cultura e o tempo presente, de uma maneira geral, sendo que 90% dele são projetos originais, desenvolvidos em parceria com autores, artistas e colaboradores. De 2008 a 2020, a empresa funcionou em um prédio comercial da rua Jardim Botânico: “A sala era apertada, mas o ambiente amigável do prédio e a vista para a Lagoa e para o Pão de Açúcar nos seguravam ali. Com a pandemia, aproveitamos o movimento de pessoas/empresas deixando a casa Vila Maurina, no Humaitá, e fizemos a mudança. Ficamos com tudo fechado lá no primeiro ano e só a partir de outubro do ano passado começamos a frequentar o espaço”, conta Bel, com uma pontada de tristeza por não ter coragem de ir de bicicleta para a nova sede, como costumava fazer.
Isabel Diegues entre os best-sellers da Cobogó.
O endereço mudou, mas os ideais seguem os mesmos: estimular a reflexão e promover o conhecimento, levando adiante um projeto consciente de (re)construção coletiva, reafirmando a crença na transformação das relações sociais por meio da leitura e da cultura. Neste sentido, a perspectiva de contar com um governo que se interessa por cultura e tem alegria de incentivar a democratização do financiamento público – “natural e fundamental em todo o mundo” – é um alento.
– A ideia inicial era criar uma editora que ocupasse uma lacuna que existia naquele momento, quando eram raras as publicações de artes visuais, música, teatro, refletindo o pensamento contemporâneo em coleções como “Cabeças da periferia”, “Encruzilhada” e “O livro do disco”. Dessa última, gosto muito do livro do Fred Coelho sobre “Lado B, Lado A”, do grupo O Rappa, que fala do encontro da Zona Norte com a Zona Sul e do reflexo disso na cultura carioca, a partir das letras do Marcelo Yuka – destaca a editora.
A Cobogó trabalha com pequenas tiragens. Um livro de teatro, por exemplo, costuma sair com 1.000 exemplares, sendo que a maioria dos títulos alcançam 3.000 unidades vendidas. Os livros de arte são exceção, pois são financiados e aí dependem do tamanho do investimento. Isabel lembra que o mercado editorial mudou muito com a crise das grandes redes Saraiva e Cultura. Para ela, a Livraria da Travessa é uma das melhores do ramo e importante parceira, mas as livrarias menores, de rua, têm papel importante na circulação dos produtos e, de um modo geral, atuam em nichos específicos: “A Janela [no JB] tem mais obras de literatura, mas todos os nossos livros estão lá. Na loja Tracks [na Gávea], temos espaço com as publicações de música e literatura; na galeria Carpintaria [no Jockey], os de arte são destaque; já a Amazon vende de tudo e não podemos ficar de fora”, admite a editora, que produz também todos seus livros de texto em e-books, a exceção são os de imagem. “O volume de vendas ainda é pequeno, mas o formato é bom para uma série de coisas, seja para levar numa viagem ou para ter uma coleção à mão para consulta”, complementa.
Em 2015, embalada pela conclusão de seu Doutorado, Adriana Maciel abriu a Numa Editora. Ela havia trabalhado na Cobogó e desde o começo direcionou suas atenções para música e arte sonora. A Numa já publicou livros como “Black Rio”, um perfil do Luiz Carlos da Vila; “Aquelas coisas todas”, da cantora e compositora Joyce Moreno; e “Jards Macalé. Eu só faço o que quero”, ensaio biográfico escrito por Fred Coelho. Os próximos lançamentos programados são “Pesadelo ambicioso”, de Fausto Fawcett; “(Neo)nazismo, um risco atual”, organizado por Eliane Pszczol e Heliete Vaitsman; e um novo volume da coleção de perfis de compositores e artistas cariocas sobre Pixinguinha, por André Diniz.
Professora de pós-graduação do departamento de Letras da PUC-Rio, Adriana investe também em “escritas performáticas”: “A ideia é que tudo que está impresso no mundo, não necessariamente a letra no papel – mas também a letra no papel –, som, filme, tudo é uma forma de escrita, tudo que tem um registro é uma forma de escrita. A proposta do curso é que cada um, ao final de dois anos, apresente um trabalho artístico ou acadêmico”, explica ela, acreditando que as pessoas precisam aprender a ler e a interpretar não só os livros, mas o próprio mundo. Um exemplo dessas escritas é o trabalho da dramaturga Denise Crispun, vizinha de Adriana no Jardim Botânico.
– Ela veio fazer o curso de “Escritas Performáticas” e eu fiquei encantada com a escrita dela. Fiquei encantada com sua sensibilidade, inteligência e sutileza e acabei convidando-a a escrever um livro de contos. “Furiosamente Calma” é o primeiro dela no gênero – atesta a editora, que mora há 18 anos no JB.
Adriana Maciel e os livros da Numa Editora. (Foto: Chris Martins)
Com o alto custo da impressão, a Numa tem apostado em e-books, um caminho interessante especialmente para aqueles livros que não terão grande circulação, mas que são importantes de serem publicados. Para Adriana, as publicações do gênero precisam se aperfeiçoar e incorporar outros recursos que o formato permite: “Hoje é tudo meio igual, sem cor. É bom para ler, mas não tem relação com o objeto, bem diferente da relação sensorial com um livro impresso. Um não precisa acabar com o outro para existir”, acredita.
Quem é do meio reconhece que esse trabalho vai muito além de editar livros. Adriana explica que hoje é preciso se preocupar com o site, com as vendas, a divulgação, a produção, o lançamento… A maior parte das editoras é pequena, com equipe reduzida e é difícil fechar a conta. Daí a opção por tiragens pequenas e e-books. O fato de trabalhar em casa, é bom, mas é ruim: “Tem dois lados, um que eu não preciso sair para trabalhar e outro que eu não saio mais de casa. Tem que ter muita disciplina. Eu não tenho muito horário, então paro na hora de dormir e acordo trabalhando”. Sobre a abertura da Janela Livraria, ela acha pouco: “Eu adorava ir à Ponte de Tábuas, podiam ter mais!”, conclui.
*Por Betina Dowsley
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