Às vésperas do Dia Nacional do Samba, comemorado no dia 2 de dezembro, a Feijoada da Tia Surica foi declarada oficialmente Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Rio de Janeiro. A justificativa apresentada foi que o evento ajuda a preservar a música e a cultura do Rio de Janeiro. Bem antes de Surica, porém, uma outra integrante da Velha Guarda da Portela realizava encontros semelhantes no quintal de sua casa no Horto.
O Pagode da Tia Elza, organizado por Elza Maria de Souza, começou no início da década de 1980. O evento era realizado nas noites de sexta-feira e reunia, em média, cerca de 70 a 80 pessoas na casa da família na rua Dona Castorina, que, segundo Emerson de Souza (neto da Tia Elza), era frequentada por nomes como Almir Guineto, Jovelina Pérola Negra e João Nogueira. Entre as celebridades que passaram pelo quintal da Tia Elza, registradas por Mariinha Souza Lima, estão Noca da Portela, Moacyr Luz, Walter Alfaiate, Dodô (primeira porta-bandeira da Portela), Cremilson Bico Doce (um dos puxadores de samba da Mangueira), Toninho das Geraes e Vó Maria (esposa do Donga).
Os filhos de Elza guardam boas lembranças daquele tempo. O deputado Edson Santos conta que sua mãe era uma pessoa muito animada, gostava de samba e desfilava na Portela. Já Emília de Souza Santos lembra que o pagode varava a madrugada e, com o tempo, acabou tornando-se muito cansativo. Juntando-se a isso as reclamações da vizinhança, o Pagode da Tia Elza foi interrompido em 1986.
Personalidade emblemática da vida cultural do Horto, Dona Elza não desanimou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima. Em 2001, o evento ganhou novo formato, a partir da comemoração de aniversário do vizinho e amigo da família, Alexandre “Magrelo” Fontes, a quem Tia Elza chamava de “filho branco”. Magrelo lembra que, certa vez, “ela pediu que eu fizesse um samba em sua homenagem, mas tinha que ter jabuticabeira na letra, árvore que dava um toque especial ao famoso quintal”.
– Um dos ícones do evento era o Lula (foto), que fazia caipirinhas maravilhosas e tinha um sorrisão sempre estampado no rosto. Uma vez, a cantora Clarissa Azevedo, que frequentava o evento e costumava fazer pequenas participações, trouxe seu pai, Geraldo, para conhecer a famosa feijoada. Logo de cara, pedi que ele desse uma canja, mas ele recusou, dizendo que não era a praia dele. Algumas caipirinhas depois, ele assumiu o violão e engatou uma hora de cantoria – relembra o produtor e fã do cantor e compositor Geraldo Azevedo.
Magrelo conta que, quando a roda de samba começava, Tia Elza ia de mesa em mesa, chamando os convidados para dançar: “Ela descia até o chão, com seus 70 e muitos na época, uma linda”. Produzida por ele, a Feijoada da Tia Elza com roda de samba acontecia em domingos alternados, começando às 13h e estendendo-se até a noite.
– Era um público diferente. Tinha aqueles que vinham almoçar e outros que só queriam saber do samba, que começava depois das 15h30. O grupo tocava até no máximo 20h30, para evitar problemas – pontua Emília, que aprendeu os truques culinários da mãe.
Em 2005, um processo colocou um ponto final no evento no quintal, mas a música e o tempero passaram a animar rodas de samba no Cosme Velho, na Lapa e, mais recentemente, na Rocinha. Nem mesmo o falecimento de Tia Elza, em janeiro de 2015, deixou a tradição acabar. No início da pandemia, a Feijoada da Tia Elza foi para o delivery. Com a alta de preços dos produtos e da logística, além da necessidade de dedicar mais atenção à família, Emília precisou suspender o serviço. Para o verão 2022, ela pensa em retomar a produção e, quem sabe, achar um novo lugar, perto de casa, para fazer os pandeiros, agogôs e tamborins soarem novamente.
– Samba e feijoada fazem parte da cultura da população negra. É nossa identidade – sintetiza Emília.
Ouça aqui o samba de Magrelo, letra abaixo:
FEIJOADA DA TIA ELZA
(Alexandre Magrelo)
Ô TIA
ABRE A PORTA DA COZINHA
MANDA UM CHEIRO PRA VIZINHA
QUE HOJE É DIA DE FEIJÃO
TEMPERA O CALDO COM CEBOLA ALHO
TIRA O GROSSO DO SALGADO
E MANDA TUDO PRO FOGÃO
ENQUANTO O LULA FAZ A CAIPIRINHA
VEM COM A SUA ALEGRIA
AQUI PRO MEIO DO QUINTAL
QUE O SAMBA É LUGAR DE BOA GENTE
NINGUÉM FICA DIFERENTE
TODO MUNDO É IGUAL
E A TARDE INTEIRA
SOB A JABUTICABEIRA
TEM PORTELA E TEM MANGUEIRA
TODO MUNDO VIRA IRMÃO
E NESSE CLIMA
CAI A NOITE E SOBE O GRAU
E A FEIJOADA SE TRANSFORMA EM CARNAVAL
É NA PALMA DA MÃO
É DIZENDO NO PÉ
TODO MUNDO JUNTINHO
FECHANDO A CORRENTE
MANDANDO UM AXÉ
ESSE É O NOSSO CAMINHO
NA RODA DE SAMBA
ME DEIXO LEVAR ATÉ DE MANHÃ
MUITO PRAZER, TIA ELZA
EU TAMBÉM SOU SEU FÃ
*Por Betina Dowsley
Parabéns pela bela matéria e um muito obrigado por nos trazer de volta essa maravilhosa lembrança! Viva a tia Elza !!!
Um dos melhores ambientes que já frequentei.
A melhor Feijoada do Rio de Janeiro.
Muito bem organizada pelo Alex Fontes e Jaline.
Tia Elza uma queridíssima.
Espero que encontrem um novo e belo lugar pra reabrir.
Ficamos Órfãos.
Magno Mendonça