O Conjunto Habitacional Marquês de São Vicente, mais conhecido como Minhocão, está fazendo aniversário: 70 anos! O que deveria ser motivo de festa, desperta apreensão com o estado de conservação do imóvel, que, no começo, contava com a manutenção do governo do Estado do Rio de Janeiro. O ambiente é familiar e seguro, mas o poder aquisitivo de seus cerca de 1.000 moradores é baixo e os R$ 350 de condomínio são insuficientes para cobrir todos os gastos provocados pelo desgaste natural das instalações ao longo do tempo.
Quando foi inaugurado, em 1952, o conjunto residencial pretendia ocupar toda a encosta, por onde hoje passa um dos túneis do eixo viário Autoestrada Lagoa-Barra. O projeto de habitação popular substituiu o Parque Proletário da Gávea, criado dez anos antes pelo prefeito Henrique Dodsworth, com 955 barracos em que viviam 5.262 pessoas e que, no início dos anos 1950, estava deteriorado e em estado de insalubridade. O imóvel foi construído pelo Departamento de Habitação Popular para atender às demandas de muitos dos funcionários da Prefeitura do Rio, que ocupavam a região de favelas da Lagoa e da Rocinha.
O projeto original é do arquiteto e urbanista Affonso Eduardo Reidy, o mesmo do Conjunto Pedregulho, em Benfica, e do Museu de Arte Moderna (MAM), no Aterro do Flamengo. O conceito era de uma cidade dentro de um edifício com suas ruas-corredor, integrando seus moradores. Inicialmente, estavam previstos cinco blocos com 748 apartamentos e equipamentos urbanos coletivos, tais como creche, escola primária e secundária, playground, mercado, lavanderia, posto de saúde, igreja, teatro, campos de esportes, administração e um departamento de serviço social. Entretanto, só o bloco principal – com conjugados de 25m² a 30m², apartamentos duplexs, de sala e dois quartos, com cerca de 45m2, e um andar inteiro dedicado a lavanderias – e o posto de saúde foram, efetivamente, construídos; os demais blocos não saíram do papel.
Na época, Reidy desenhou, inclusive, uma rua para fazer a ligação viária Lagoa-Barra através de um túnel subterrâneo sob os Dois Irmãos. A obra, assim como tantas outras na cidade, foi iniciada, mas nunca concluída. Essa avenida cortaria o terreno do conjunto residencial com rebaixamento de pistas destinadas ao tráfego, que passaria em nível inferior ao da larga passagem de pedestres, e restabeleceria a ligação entre as duas partes do conjunto. O projeto previa absoluta separação entre as circulações de veículos e de pedestres e, provavelmente, diminuiria bastante o barulho do tráfego intenso para os moradores, um dos motivos de desvalorização dos imóveis atualmente.
Em depoimento à Ana Maria Magalhães, diretora do Filme “Reidy, a construção da utopia”, a engenheira Carmen Portinho, que foi casada com o arquiteto, disse que, após o falecimento dele e sua própria aposentadoria, “fizeram o que bem entenderam ou o que era mais conveniente para os demais interessados. Resolveram cortar uma parte dos edifícios e passar um túnel por lá. Mas é gente de baixa renda, ninguém quer saber de atender. Aquilo foi um crime. A rua passava em outro lugar, não atravessava o conjunto. Largaram o prédio lá sozinho, e ele deixou de pertencer a uma ‘unidade de habitação’. Quer dizer, estragaram tudo. As curvas de Reidy, inspiradas nos edifícios “auto-pistas” de Le Corbusier [célebre arquiteto francês], promovendo o bem-estar social e integrando natureza, arquitetura e urbanismo, são a síntese do possível. Elas nos lembram que a habitação é fator determinante para o futuro das cidades”.
A obra foi ainda mais descaracterizada com a construção do túnel Zuzu Angel, a partir de 1979. Para abrir o túnel acústico, inaugurado 30 anos depois do prédio, a Prefeitura demoliu parte de dois andares e cerca de 30 janelas. Para alocar os moradores desalojados foram construídos três prédios no terreno atrás do Minhocão. Apelidados de “Três Porquinhos”, os novos edifícios são menores, com apenas quatro andares e quatro apartamentos por andar, também sem elevador. Na mesma época, graças à doação de uma vizinha, moradora do Jardim Pernambuco e herdeira da antiga rede de supermercados Disco, foram construídos um campo de futebol, um ginásio e uma creche.
Nascido e criado no Minhocão, Alex Carvalho Alves conhece cada cantinho do lugar e seus moradores. Ele lamenta que as benfeitorias não tenham resistido ao tempo: “O mato tomou conta do campo e do parquinho, o ginásio vive trancado e a creche virou oficina e academia de luta”.
Alex ingressou na PUC-Rio há mais de 20 anos pelo NEAM – Núcleo de Estudos e Ação sobre o Menor e, desde o início, trabalha no Departamento de Informática. Para ele, não há nada mais prático do que morar ali: “É uma tranquilidade não precisar me preocupar em como chegar ao trabalho, seja durante a pandemia ou em uma greve de ônibus”, atesta ele, que morou apenas dois anos fora de Minhocão, enquanto esteve casado. Alex voltou ao prédio após sua separação e o falecimento de seu pai: “Não podia largar minha mãe aqui sozinha”, afirma.
Outra tentativa de levar lazer para o local foi promovida pelo programa do GNT “Lá Fora com Bel Lobo”, no qual a arquiteta transformava espaços ociosos ao ar livre. No Minhocão, em 2014, ela montou uma pista de skate e blocos com nichos para emoldurar as brincadeiras infantis, além de ter instalado uma mesa de ping-pong, tudo no pilotis do prédio. A ação do tempo e a falta de manutenção condenaram os equipamentos.
Apesar disso, o perfil dos moradores do prédio vem mudando ao longo dos anos e, a partir do início do século XXI, pode-se perceber um processo de gentrificação do antigo conjunto residencial, que, desde então, passou a ser procurado por estudantes da PUC-Rio, especialmente estrangeiros. Os principais fatores responsáveis por isso são a localização e os preços mais acessíveis.
Com a mudança de perfil e aumento da procura, veio a valorização dos imóveis. Se antigamente os preços de aluguel ficavam em torno dos R$ 500; hoje, triplicaram, sendo que as unidades duplex podem chegar a R$ 2.000 por mês. Na internet, tem até anúncio de venda por R$ 650 mil. A jornalista goianiense Cibelle Brito tinha 22 anos ao chegar ao Rio. Em 2008, ela alugou um dos apartamentos duplex com seu atual marido, Flávio Albuquerque, que, naquela época, era seu namorado.
– À primeira vista, a impressão que se tem é ruim, mas o clima provinciano e acolhedor acabou nos conquistando. Moramos lá até 2016. Quando nós viajávamos, sempre podíamos contar com uma vizinha para molhar nossas plantas – lembra a atual editora-assistente de Política, no jornal O Globo, que há seis anos aluga um dois quartos em um dos três prédios dos fundos.
*Texto e fotos: Betina Dowsley, exceto as duas últimas, do acervo pessoal de Cibelle Brito.
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