4 de maio de 2023
IMPA, UM VIZINHO INCOVENIENTE

Chris  Martins

O Horto tem uma história sofrida desde o seu começo, lá pelo século XIX. A área já foi Quilombo, depois foi tomada por fábricas, seguida por trabalhadores do Jardim Botânico. Estes foram seduzidos por seus empregadores com promessas de terrenos, que não foram cumpridas e que gerou uma disputa que se arrasta até hoje. E em pleno século XXI, a história se repete e o jogo de poder continua. Desta vez o embate é entre os moradores da região e o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) que recebeu, em 2014, da TV Globo, a doação do terreno de número 60 na rua Barão de Oliveira Castro, para construir um alojamento com 129 apartamentos que mais parece um hotel, pelo investimento em torno de R$100 milhões de dinheiro público. Quando estiver pronto, o prédio contará com oito andares, divididos em quatro blocos de dois pavimentos sobre um pilotis com um auditório de 232 lugares.

A história reúne quase dez anos de polêmica, brigas, ameaças e processos, dignos de um novelão das 21h ou série de TV. Poderia até ser um reality show, com duras provas de resistência para os 300 moradores das ruas Barão de Oliveira Castro e Marquês de Sabará. Uma delas – a mais sofrida, por unanimidade – foi ouvir (e assistir) motosserras derrubando 459 árvores frondosas durante dias seguidos, ao longo de um ano e meio. E no antigo verde o que se vê é lama e terra, deixando o terreno com um aspecto que lembra Serra Pelada.

No final de fevereiro, um encontro reuniu a Secretária Tainá de Paula, de Meio Ambiente e Mudança do Clima do Rio, com moradores da região e as associações de moradores AMAHOR (Horto), AMAJB e ABAMA (Associação dos Moradores da Barão de Oliveira Castro e Marquês de Sabará), para ela tomar ciência dos fatos. Durante quase três horas, muito se ouviu sobre a falta de respeito da construtora – e do IMPA – com moradores, que pagam seus impostos – leia-se um IPTU alto – e sobre promessas não cumpridas. A Secretária saiu de lá dizendo que ia estudar tudo o que foi apresentado e marcaria uma nova reunião em 30 dias, o que não aconteceu. Questionada pelo JB em Folhas no começo de maio – quase dois meses depois –, Tainá deu a desculpa de ter ficado aguardando o retorno dos moradores – que não era o combinado – e depois alegou desunião entre as associações. Mas, agendar outra reunião que é bom, nada.

AMAHOR, ABAMA e AMAJB na reunião com a SMAC (Foto: Chris Martins)

Logo depois da reunião, a equipe do JB em Folhas foi para o Horto e começou a apurar esta reportagem que você lê agora. Foram três dias andando pela região, observando o movimento de ir e vir de dezenas de caminhões e ouvindo os moradores e suas tristes histórias de convivência em um espaço que tinha como característica principal o silêncio e o verde. O verde está indo aos poucos, junto com a fauna, que começa a se dispersar, enquanto o barulho está presente diariamente e intensamente, seja de pedras quebrando ou máquinas circulando pelo terreno, fora do horário permitido e na maioria das vezes ultrapassando, em muito, os 55 decibéis permitidos em zonas residenciais.

Depois deste giro pela região, não é difícil concluir que o problema é bem maior do que um mimimi de moradores reclamando sobre a obra do vizinho e vai muito além do Horto. É uma reclamação autêntica e justa, de moradores que estão vendo diariamente coisas erradas acontecerem e tentando de todas as formas chamar a atenção. O desmatamento sem precedentes pode causar estragos no bairro do Jardim Botânico e em outros pontos da cidade. O primeiro alarde aconteceu em abril de 2019, quando um forte temporal levou o caos à região, com enxurrada de água, provocando a perda de três casas. Estas cenas de horror se repetiram em menor escala, em fevereiro de 2023, quando a chuva derrubou o muro da própria obra, enchendo a rua de pedras e de lama. Atualmente, quando o tempo começa a fechar, os moradores do entorno já ficam tensos. E não é para menos, afinal, dois pareceres técnicos da região apontam o alto risco geológico do terreno. Um foi solicitado pelo IMPA ainda em 2018, antes do temporal do ano seguinte e das licenças que permitiram o desmatamento; enquanto o outro foi realizado pela Divisão de Recursos Minerais (DRM), órgão estadual, em 2022, já sem a maior parte das árvores, que acaba corroborando o primeiro. “A obra continua, apesar deste documento e depois das chuvas terem provocado uma catástrofe na rua. Isso é uma questão que afeta não só os moradores ao redor, que estão em risco, mas também quem for morar ali – afirma Ana Soter, Presidente da ABAMA (foto abaixo).

Moradores promoveram várias reuniões para chamar a atenção para o problema. (Foto: acervo pessoal)

A designer, que mora na rua há 49 anos e desde 2000 tem uma casa ao lado do terreno 60, se tornou uma especialista em todas as questões que envolvem a obra, como licenciamento, legislação, virando, quase sem querer, a líder do movimento contra o IMPA. Segundo ela, a legislação urbanística protege a área, que não permite a construção de mais de quatro casas no terreno. Vale dizer que a Barão de Oliveira Castro tem apenas 276m de extensão e fica na Zona Residencial Unifamiliar, que só permite a construção de uma casa por lote. Ana não entende porque a lei serve para todos e não para o IMPA, e a insistência da instituição em fazer uma obra deste porte em um lugar inadequado. Na sua opinião, o investimento público poderia ser melhor direcionado para diferentes setores educacionais que estão no vermelho e com falta de recursos.

“Ninguém está questionando se eles precisam ou não de um alojamento, mas sim a forma como isso está sendo feito. Só porque ganhou um terreno não justifica fazer. É uma coisa megalômana. Não combina o Ministério da Educação investir no desmatamento. Para que a elite da matemática, uma instituição científica que deveria dar exemplo, precisa de um alojamento de altíssimo luxo na floresta?” – questiona Ana Soter. (foto abaixo)

A relação com a Instituição só piorou nos últimos anos e hoje, os moradores, além do barulho constante, têm que conviver com a insegurança. Não se sabe ao certo se por conta do entra e sai e do aumento do movimento de pessoas diferentes e estranhas ao bairro. Em uma semana, três bicicletas foram roubadas em diferentes prédios e, um intervalo de dois dias, ocorreram dois roubos de carro a mão armada. Há também o medo e a intimidação que muitos moradores relataram sofrer. Coisas como peões passando e olhando para dentro das casas e fazendo comentários do tipo “este muro é baixo, dá para pular fácil!”. E se você não tem segurança na sua casa, onde mais você vai ter? Outro episódio curioso aconteceu quando a a equipe de reportagem do JBemF estava na rua Barão de Oliveira Castro entrevistando moradores e um caminhão passou e o motorista começou a filmar enquanto dirigia.

 

O motorista passa e, mesmo dirigindo, começa a filmar a equipe e os moradores na rua (Foto: Chris Martins)

 

A luta tem sido longa, exaustiva e com pouco eco. Das Associações do bairro, os moradores contam com a solidariedade da AMAHOR, que é calejada no embate. A AMAJB participou no começo de algumas reuniões com o IMPA, mas quando mudou sua diretoria, acabou se afastando e não se manteve atualizada sobre o andamento da obra do assunto e nem discutindo este assunto em suas reuniões, só retornando agora, no encontro com a SMAC. Ana Soter tem usado uma expressão que, na sua opinião, é lamentável, mas define bem a situação atual. “A gente está vivendo um estupro ambiental com o IMPA forçando um espaço que não cabe e contra a vontade da maioria. É desesperador este sentimento de impotência, mas eu não vou deixar de gritar e lutar até o fim. Tenho fé que alguém entenda esta tragédia que se anuncia. Antes que seja tarde”, conclui.

E depois de ler toda esta reportagem o leitor deve estar se perguntando como a grande imprensa ainda não chamou a atenção das autoridades e da população em geral?

ENTENDA O CASO

O JB em Folhas publicou, em 8/4/2021, a matéria “A polêmica expansão do IMPA”, onde explica, com detalhes, tudo o que estava acontecendo.  Em julho de 2014, o IMPA recebeu, da TV Globo a doação de um terreno de 251.824 m2 na rua Barão de Oliveira Castro para construção de um alojamento para seus alunos. O acordo tem duração de 30 anos e a emissora pode ter de volta o terreno, ao final deste período, se as todas as partes concordarem. O espaço contará com quatro pavilhões e teria 129 apartamentos, de diferentes tamanhos (alguns de três quartos), com capacidade para abrigar quase 200 pessoas, considerando apenas uma pessoa por quarto, para alojamento de estudantes e pesquisadores, além de estacionamento. Tudo isso com  uma entrada, apenas pela rua Barão de Oliveira Castro, que não é permitido, pois uma obra deste porte precisa de duas saídas, para o caso de algum acidente. Só que não se contava que a saída pela rua Sara Vilela ficaria obstruída depois do temporal de 2019 e até hoje isso não foi resolvido. No projeto original, soluções sustentáveis, como teto verde, energia solar e reutilização de águas pluviais tentavam minimizar o impacto da obra na comunidade local, não só durante a obra, mas em seu cotidiano, com a presença de tantos novos moradores e visitantes.

O aviso sobre o risco geológico e a doação do terreno. Tudo documentado. (reproduções)

 

 

PARA CADA MORADOR, UMA HISTÓRIA TRISTE DESSA INFELIZ CONVIVÊNCIA

São vários registros e depoimentos de que alguma coisa está muito fora da ordem no Horto. Por isso tudo, a editora decidiu manter os relatos com nomes fictícios, para proteger a identidade dos entrevistados. Cada um fez o seu relato sobre esta crônica de uma tragédia anunciada.

 

A sede da IBM, nas Canoas está vazia. (Foto: internet)

O ECÓLOGO –  Por que não usar os prédios abandonados da cidade? O ecólogo mora na região desde que nasceu, há 58 anos, na casa que seu avô construiu em 1931. Acostumado a acompanhar o embate da comunidade do Horto para se manter na região desde sempre, ele vê como dois pesos e duas medidas, o tratamento que é dado pela Prefeitura aos antigos moradores e ao IMPA e levanta três pontos que causam estranheza na condução do conflito. O primeiro é a Lei da Mata Atlântica, criada em 2006 e que proíbe o desmatamento na área e que não permitiria a derrubada de 457 árvores. Outro ponto interessante, é de ordem urbanística: como pode uma rua, com 200 habitantes, construir um prédio para habitar mais 300? Na sua opinião, isso tem que ser bem planejado, o que não parece estar acontecendo, já que os moradores não foram informados. E para fechar, o ecólogo lembra a quantidade de prédios abandonados no Rio de Janeiro, inclusive na própria floresta, como o da IBM, na Estrada das Canoas (foto acima). “Se a intenção do IMPA é fazer um hotel, já tem um pronto e que pertence à Prefeitura, que deu a licença sem pesquisar e buscar alternativas antes”, afirma o morador que fica impressionado com este conjunto de ações que despreza a comunidade local e que paga um IPTU alto. “Minha família vive na região há 100 anos e meu pai se mudou para não ver essa destruição. As autoridades não estão nem aí. O Prefeito nunca apareceu para ouvir o ponto de vista dos moradores e a reunião com a Tainá foi inócua”, conclui.

O PROFESSOR – Salvo pela Covid-19! Nascido e criado no Horto há 43 anos, o professor só tinha boas recordações deste pacato bairro, onde seus avós viveram e criaram a família. Costumava soltar pipa na pedreira e queria proporcionar a mesma infância para a filha de três anos. Só que não. Hoje a rotina é ficar em casa, para preservá-la e ainda com as janelas fechadas para fugir do barulho. Dois casos ilustram bem este momento para ele. Tempos atrás, o professor estava em sua casa se recuperando da COVID-19, quando começou a sentir um tremor. Um rompedor de rocha, um guindaste gigante, com ponteira, tentava fazer um buraco para passar uma manilha bem próximo da sua residência.  Ele gritou, acenou e nada. Só teve jeito quando ele subiu no muro e mostrou que estava com a filha.  E mesmo assim não houve um pedido de desculpas. “Tenho que agradecer por ter pego Covid. Caso contrário, quando voltasse do trabalho não teria mais família ou casa”,  reflete.  Ele recorda ter saído uma vez para medir o barulho com um medidor (foto abaixo), que registrou 91 decibéis, sendo que o limite em zona residencial é de apenas 55db.  “Eles usam um maquinário grande em uma área que não comporta e não há nenhum respeito com o morador e cidadão, que paga um IPTU alto. O que estamos vendo aqui é outra ciclovia Tim Maia, que tinha todas as licenças e um dia ruiu. Depois que acontece o pior, não adianta chorar e fazer homenagem. Eu não quero esperar isso acontecer, quero o meu direito de morador.  Não vai ser por falta de aviso”, conclui, lembrando que o barulho vai sempre além do horário estabelecido. “Sábado de Aleluia, por conta do perigo de chuva, os tratores estavam circulando até às 23h. Quem aguenta?”

O medidor de som marca bem acima do permitido \(Foto: acervo pessoal)

O RADIALISTA  São 459 árvores mortas contra 5.529 mudas! Para o radialista o que mais incomoda é o crime ambiental.  Na sua opinião – compartilhada por outros vizinhos, não dá para derrubar 257 árvores e, em contrapartida, plantar apenas 5.529 mudas, que vão demorar para crescer, achando que resolve.  “É um absurdo o que estão fazendo com a mata. A fauna está descendo e indo para as casas e os pássaros não tem onde pousar”,  destaca ele que chama a atenção para outro ponto: “Ao que parece a rua tem um único síndico, o IMPA e a Prefeitura trabalha em função deles. Ficamos dias sem água, a rua está esburacada e ninguém nos ouve”, sentencia.

A TERAPEUTA  – Contra o barulho, não há meditação que dê jeito – Formada em nutrição, terminando psicologia e atuando em meditações guiadas,  a terapeuta de 25 anos precisa de tranquilidade. Não só para trabalhar, mas também por conta de uma hipersensibilidade auditiva. Ela tinha um único sonho: morar em um lugar silencioso, com vista para o verde. E foi assim que ela pegou todas as suas economias e comprou um apartamento no Horto. “Era uma questão importante para mim, tenho muita enxaqueca”, explica. Não teve tempo de comemorar o novo espaço, porque o barulho não deu sossego.  Da janela do quarto, ao invés da vegetação, ela acompanha o movimento do trator e mantém a janela fechada por conta da poeira e do barulho à sua volta. Sem falta da conta de luz, que é alta  por conta do uso intenso do ar condicionado. “É muito frustrante. Já reclamei várias vezes na ouvidoria e nada. Ignoram totalmente”, lamenta ela que recebeu ameaças nas redes sociais.

A PESQUISADORA – Moro no paraíso, mas vive no inferno! Ela tinha sonho de morar no Horto, com o verde em volta, para fazer o seu trabalho de pesquisa na sacro silêncio. Foi durante a pandemia que ela conseguiu o apartamento tipo casa (foto abaixo), com uma área externa cheia de plantas, chuveirão, espaço para reunir os amigos no domingo depois que a vida voltasse ao normal. Mas ainda não voltou. E não foi por causa da pandemia. Ali, a doença é a do barulho e a falta de consideração. Os funcionários da obra fazem piada, debocham e não respeitam a moradora. O marido acabou deprimido com o som das árvores sendo cortadas, um barulho que, segundo ela, entrou na alma. “É uma sensação de impunidade terrível. Hoje eu nem vou mais o oi lá fora, não faço exercícios, tenho a sensação de estar sendo vigiada o tempo todo. Vim morar no paraíso, mas na verdade, vivo no inferno”, conclui.

Na casinha do sonho, barulho e falta de privacidade. \  (Foto: Chris Martins)

 

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